

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, n. 72, p. 191 - 202, jan. - mar. 2016
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tanto, a mesma tese é usada pelos “machistas” para justificar o massacre
contra as mulheres quando elas, por exemplo, não querem o prossegui-
mento de uma ação penal.
O que se diz na prática? “O corpo é dela e ela faz o que quer com
ele”. Como se vê, a tese libertária deve ser encarada com cuidado, por-
que vem dando margem a muitos mal-entendidos. O tópico (o sentido
comum: “o corpo é meu e faço dele o que quero”) é bem-intencionado.
Na prática, no entanto, ele é usado de forma nefasta.
Desde logo, o nosso corpo é realmente nosso? Do ponto de vis-
ta das nossas escolhas, poderíamos dizer que sim (“bebo porque quero,
fumo porque me apetece, me drogo porque desejo isso” etc.). Mas do
ponto de vista social há muita gente e muitas entidades que querem se
apropriar (e se apropriam) dos nossos corpos.
Quando certas ideologias pretendem se apoderar das nossas men-
tes (a ideologia comunista da antiga União Soviética, por exemplo), nós
prontamente reagimos. Mas o tempo todo muitos querem se apropriar
(e frequentemente se apropriam) das outras partes do nosso corpo (sem
que haja reação). Já prestou atenção nisso?
Ao longo da História (e das ideologias) muita gente disse o que
nossos olhos devem ver (não veja isso, não veja aquilo), o que os nossos
ouvidos devem ouvir (não ouça isso, não ouça aquilo), o que nossa língua
pode falar (não fale isso, não fale aquilo), o que nossas mãos podem fazer
(não faça isso, não faça aquilo, não toque nisso, não toque naquilo), onde
nossos pés podem pisar, o que devemos pensar etc.
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Entre o eu o e o corpo interferem religião, educação, medicina, die-
tética, ginástica, higiene, cosmética etc. Os poderes econômicos extrati-
vistas usam os corpos daqueles que são obrigados ao trabalho escravo, ao
tráfico de mulheres ou de crianças. Os chefes do tráfico usam os corpos
de crianças para promoverem o tráfico. O poder político, pela biopolítica
(Foucault), interfere todos os dias nos nossos corpos (vacinação, uso de
cinto de segurança, controle de doenças, restrição de alimentação, parti-
cipação em guerra, humano-bomba etc.).
Nosso corpo não passa de um instrumento nas mãos dos explo-
radores ou da biopolítica do Estado. Estado, fábrica, escolas, quartéis,
cidades... todos querem disciplinar nossos corpos (úteis e dóceis – diria
Foucault).
4 Cf. ARTETA, Aurelio.
Tantos tontos tópicos.
4ª edição. Barcelona: Ariel, 2012, p. 41.