

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 142 - 163, jan - fev. 2015
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é, não é reconhecido, diga-se ordenado, na sacrossanta missão de revelar
a palavra secreta escondida por detrás do texto legal, em suma, a verdade.
Em face desse ‘efeito alienante’, Warat propõe, a partir do saber
produzido pelo
senso comum teórico dos juristas
, a denominação de
juri-
dicismo
, o qual, mesclando a lei, o saber e o poder advindo do
Outro
, con-
fere ao discurso jurídico dos autorizados o adjetivo de sagrado, tanto as-
sim que se encontram argumentos do seguinte jaez:
reza a lei... amém
10
.
Mediando a lei e o desejo, o
senso comum teórico dos juristas
será o ‘
cão
de guarda’
do processo intersubjetivo, barrando a participação dos sujei-
tos, os quais passam a receber denominações jurídicas, na forma da lei, de
autor/réu, requerente/requerido, suplicante/suplicado. Substantivações
ou adjetivações que, como pontua Streck, deveriam envergonhar. Nem se
fica, todavia, corado, facilitando a remessa da decisão para o plano ideal,
sem rostos, nem vida, tão somente raciocínios lógico-dedutivos. O divino,
rebatizado agora sob o pálio da ciência, mantém a estrutura do poder,
antes religioso, cuja funcionalidade de agir por mandato do Pai também
justifica a obediência.
O ‘juridicismo’, entendido por Warat – a partir do saber ‘legalista’
trazido por Legendre – como “
um conjunto de conhecimentos destinados
a fazer funcionar uma sociedade, na perspectiva em que opera a lei,”
11
de
mãos dadas com o ‘cientificismo’
12
, autoautoriza-se a realizar a
passagem
aos mortais
da palavra divina, dando um caráter mágico ao ato. Dito de
outra forma: a
verdade
está dada e advém do
Outro
, sendo que o papel
do intérprete-glosador, desde que reconhecido como tal pelo
senso co-
mum teórico,
é o de, com caráter profético e enigmático,
dizer o Verbo
,
afinal, nunca é demais lembrar:
no início era o Verbo.
Para que se esforçar demaneira vã, se o discurso do
Mestre
(Lacan)
13
pode oferecer os
significantes
necessários à
salvação
? Ademais, é sempre
um risco saber demais, e os ‘juristas-tenentes’ estão aí, aptos e adestra-
dos, para emitir o discurso a ser consumido, censurando, por certo, as
‘ovelhas negras’, aquelas que quiserem se desgarrar do
rebanho doma-
10 WARAT, Luis Alberto.
Introdução Geral ao Direito:
a epistemologia jurídica da modernidade..., p. 77: “O juridicis-
mo, então, legitima o discurso que contém o oráculo do poder, legitima o funcionamento social da lei, como uma
palavra enigmática, que demanda a presença de glosadores sacralizados.”
11 WARAT, Luis Alberto.
Introdução Geral ao Direito:
a epistemologia jurídica da modernidade..., p. 76.
12 WARAT, Luis Alberto.
Introdução Geral ao Direito:
a epistemologia jurídica da modernidade..., p. 76-77: “O cien-
tificismo pode ser caracterizado como o sistema de representações constitutivas do imaginário das ciências sociais,
na versão da tradição positivista. Esse imaginário exalta as possibilidades de uma ciência das ciências, que seja ao
mesmo tempo crítica científica à filosofia.”
13 LACAN, Jacques.
O seminário: o avesso da psicanálise..
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