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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 137 - 160, Setembro/Dezembro. 2017
SUMÁRIO
: 1. Introdução. 2. Síntese dos principais argumentos invocados
no julgamento do RE 878.694/MG. 3. Novos contornos da liberdade no
Direito Civil. 4. A questão da liberdade quanto ao regime jurídico sucessório
no casamento e na união estável. 5. Ausência de liberdade e sufocamento
do afeto. 6. Outros fundamentos para a defesa da inconstitucionalidade do
artigo 1790. 7. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Ana dividiu com Marcos
1
uma convivência pública, contínua e du-
radoura – que perdurou por cerca de nove anos –, e estabelecida com o
objetivo de constituírem família. Em 2009, Marcos faleceu, levando Ana
a ajuizar em face dos três irmãos do companheiro uma ação de reconhe-
cimento de união estável cumulada com petição de herança. O Tribunal
de Justiça do Estado de Minas Gerais apreciou o feito, fazendo incidir a
norma do artigo 1790, III, do Código Civil, atribuindo a Ana apenas um
terço dos bens onerosamente adquiridos por Marcos na vigência da união
estável, sendo todo o resto do patrimônio do
de cujus
repartido entre seus
irmãos. Interposto recurso extraordinário pela autora, foi reconhecida sua
repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de definir
questão tormentosa que pairava desde o ano de 2002: seria constitucional o
tratamento diferenciado conferido pelo Código Civil ao companheiro so-
brevivente, em regra mais desvantajoso que o regime sucessório do cônjuge
nas mesmas condições?
Com efeito, enquanto a sucessão do cônjuge (
rectius
, a sucessão le-
gítima, ou seja, a que se opera por força de lei) é disciplinada pelo artigo
1829
2
do Código Civil, a do companheiro era tratada em apartado no artigo
1790
3
, suscitando intenso debate sobre a constitucionalidade do segundo
dispositivo, reputado veiculador de discriminação irrazoável e, portanto,
1 Os nomes citados são fictícios.
2 “Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da
comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão
parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III - ao cônjuge sobrevivente;
IV - aos colaterais.”
3 “Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosa-
mente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.”