

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 78, p. 286 - 317, Janeiro/Abril 2017
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2. BREVE ANÁLISE HISTÓRICA E GÊNESE TEÓRICA
2.1. Da antiguidade clássica à formulação de Locke: a origem teórica
da separação de poderes
Pelo menos desde a antiguidade clássica são empreendidos esforços
para o estudo e compreensão do fenômeno da separação de poderes. Tanto
é assim que a teoria da constituição mista de Aristóteles é considerada a
origem remota da doutrina da separação de poderes.
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De seu turno, a noção de separação de poderes como instrumento garan-
tidor da liberdade individual surge na Inglaterra do século XVII, estritamente
associada à ideia de
rule of law
. A
rule of law
é considerada a matriz histórica
do Estado de direito, e, também, a origem próxima da doutrina da separação de
poderes como técnica de distribuição orgânico-funcional do poder estatal.
Em termos sumários, pode-se dizer que a
rule of law
consistia em
um movimento com pretensões antiabsolutistas, cujo objetivo era garantir a
liberdade dos indivíduos pela divisão e limitação do exercício do poder po-
lítico centralizado nas mãos do soberano, visto que a concentração de forças
e prerrogativas (funções legislativa e executiva) em um único órgão poderia
levar à arbitrariedade e à tirania.
É de Miranda a afirmação segundo a qual a
rule of law
consistia no
conjunto de princípios, nas instituições e nos processos que a tradição e a
experiência dos juristas e dos tribunais mostraram ser essenciais à salvaguar-
da da dignidade das pessoas frente ao Estado, “à luz da ideia de que o direito
deve dar aos indivíduos a necessária protecção contra qualquer exercício
arbitrário do poder.”
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Coube a John Locke, no entanto, a partir do padrão racional da mo-
dernidade, a primeira sistematização científico-doutrinária do princípio
2 Constituição mista é aquela em que vários grupos ou classes sociais participam do exercício do poder político, ao con-
trário das constituições puras, nas quais somente um grupo ou classe social é titular quanto ao exercício do poder político.
Na antiguidade clássica entendia-se a constituição não como o documento juspolítico conformador do Estado, mas sim
como o modo pelo qual as cidades-estado gregas (
polis
) se organizavam e, ainda, como se revelava, do ponto de vista
prático, o exercício do poder político e a sua relação com as estratificações sociais fortemente presentes naquela época.
Segundo afirmado por Piçarra, no modelo aristotélico de constituição mista consta apenas uma ideia que andará associada
à doutrina da separação dos poderes, já numa fase avançada de sua evolução: a “do equilíbrio ou balanceamento das classes
sociais através da sua participação no exercício do poder político, viável mediante o seu acesso à orgânica constitucional”.
Convém observar que Piçarra defende a constituição mista como uma forma de reação do nível institucional sobre o nível
social, proporcionando, deste modo, o equilíbrio global do sistema político estatal. Vide PIÇARRA, Nuno.
A separação
dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um contributo para o estudo das suas origens e evolução.
Coimbra: Coimbra editora, 1988, p. 36.
3 MIRANDA, Jorge.
A Constituição de 1976. Formação, estrutura, princípios fundamentais.
Lisboa, 1978, p. 473-
474, nota 1.