

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, n. 75, p. 285 - 304, jul. - set. 2016
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um mês. E eu passei 90 dias lá e ‘sentença neles’. O povo me
apelidou de ‘limpa-trilho’, porque eu limpava a área. Adora-
va a área criminal. ”.
Na verdade, o juiz com o qual ela foi trabalhar já tinha um histórico
de vários problemas e acusações de ser um profissional incompetente e
aproveitou-se da chegada da colega novata para deixar de comparecer ao
trabalho, escorando-se em Iracema, que em três meses tirou todo o atra-
so que ele acumulava. Mesmo tendo esboçado seu descontentamento
pelo envio de uma juíza que seria, em tese, incompetente, deixou tudo
em suas mãos e como não frequentasse o ambiente de trabalho, Iracema
afirma que, mesmo com a tensão inicial, pôde trabalhar relativamente
tranquila na maior parte do tempo.
Numa outra feita, conta que um funcionário de um cartório de Osas-
co também colocou publicamente seu preconceito de gênero. Segundo
conta, o cartório estava extremamente bagunçado e era preciso organizar
ummutirão para colocar as coisas em ordem: “Ele disse deliberadamente:
‘eu não gosto de mulher juiz, então eu não vou ajudar não’.” Entretanto,
Iracema, principalmente por sua personalidade, mas talvez também por
conta de sua idade e de toda a experiência acumulada em anos de sala de
aula, não parece nunca ter se acuado diante dessas situações em que foi
desafiada por conta de seu gênero. Nesse caso do funcionário, dada a es-
tabilidade vitalícia das funções concursadas, pesquisou e descobriu como
poderia legalmente tirar o misógino em questão do cargo e concluiu cate-
goricamente para mim: “Eu sou muito direta, muito impositiva. Eu sou um
trator, ninguém nunca me atrapalhou. Então eu fui e obriguei ele a sair.”
Da mesma forma, no trato com os réus, sentia igualmente que seu
gênero sugeria uma fraqueza a ser desafiada, mas (e contando isso com
um ar que dá a entender que talvez ela até gostasse de poder comprovar
o contrário), sustentava sua firmeza:
“Os réus olhavam para mim, viam que eu era mulher e pen-
savam ‘tá no papo’. Vinham chorando e sofrendo, mas eu
não soltava ninguém. Nunca caí nessas conversas. Preso só
canta na gaiola. ”