Background Image
Previous Page  393 / 590 Next Page
Basic version Information
Show Menu
Previous Page 393 / 590 Next Page
Page Background

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 378 - 408, jan - fev. 2015

393

crítica à ideologia seria se colocar do lado do Real, do lado daquilo que

sobra, do que transborda. Essa a razão fundamental pela qual eventual

contemplação da realidade já recai diretamente sobre a simbolização. E,

dessarte, como não poderia deixar de ser, se compromete, se ajusta, se

autocoloca como própria ideologia, pela adesão parasitária a certo discur-

so. Uma denúncia não ideológica da ideologia presumiria a capacidade

de o sujeito da enunciação se colocar em uma crisálida que lhe garantiria

imunidade à própria simbolização.

Assim sendo, é forçoso reconhecer que uma crítica da ideologia se

constitui como um enunciado performático (da pura ideologia). Essencial

aqui é ompreender que a operação ideológica torna despiciendas as ra-

zões invocadas pelo “fazer” – se verdadeiras ou falsas. Tomem-se como

exemplo as chamadas guerras “preventivas”, as ocupações de territórios

baseadas na “proteção de direitos humanos”. Pouco importa que real-

mente existam ou não tais violações. Desde a partir do modelo descrito

por Sloterdijk, é possível se mentir dizendo a verdade. Portanto, não exis-

te um “lado de lá” da ilusão, que corresponderia a um local privilegiado

de acesso à verdade.

Estabelecidos os pontos de compreensão do termo ideologia, a

grande crítica tecida às categorias “acusatório” e “inquisitório” não pode

ela mesma se colocar num estado letárgico de imunização à ideologia.

Naturalmente que correspondem a certos embaraços metodológicos

causados pela tentativa de reduzir a multissignificatividade dos concei-

tos acusatório e inquisitório a um chão bem medido e calculado de redu-

ção sígnica. Entretanto, em se levando em consideração que a crítica se

estabelece virtualmente como identificação de um insuportável excesso

de significação derivado daquelas categorias, e, para além disso, contan-

do que a crítica se faz ela própria igualmente ideológica, muito pouco se

acresce com a substituição das categorias acusatório e inquisitório por

outra qualquer. O denuncismo de anacronismo ou superação das catego-

rias acusatório ou inquisitório torna pouco palpáveis as bordas de som-

breamento registradas no maquinismo autoritário que corresponde a um

processo penal “consensualmente” orquestrado a partir de significantes

“ideologicamente neutros”. É justamente na confluência entre político e

jurídico – ocupado pelo binômio pena-processo – que as opções devem

se fazer claras

31

. Se, em atenção às categorias invocadas por Damaska, há

31 Cf .COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. "Por Que Sustentar a Democracia do Sistema Processual Penal Brasi-

leiro?"

In

Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica,

n. 14. Belo Horizonte, 2013.