

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 378 - 408, jan - fev. 2015
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crítica à ideologia seria se colocar do lado do Real, do lado daquilo que
sobra, do que transborda. Essa a razão fundamental pela qual eventual
contemplação da realidade já recai diretamente sobre a simbolização. E,
dessarte, como não poderia deixar de ser, se compromete, se ajusta, se
autocoloca como própria ideologia, pela adesão parasitária a certo discur-
so. Uma denúncia não ideológica da ideologia presumiria a capacidade
de o sujeito da enunciação se colocar em uma crisálida que lhe garantiria
imunidade à própria simbolização.
Assim sendo, é forçoso reconhecer que uma crítica da ideologia se
constitui como um enunciado performático (da pura ideologia). Essencial
aqui é ompreender que a operação ideológica torna despiciendas as ra-
zões invocadas pelo “fazer” – se verdadeiras ou falsas. Tomem-se como
exemplo as chamadas guerras “preventivas”, as ocupações de territórios
baseadas na “proteção de direitos humanos”. Pouco importa que real-
mente existam ou não tais violações. Desde a partir do modelo descrito
por Sloterdijk, é possível se mentir dizendo a verdade. Portanto, não exis-
te um “lado de lá” da ilusão, que corresponderia a um local privilegiado
de acesso à verdade.
Estabelecidos os pontos de compreensão do termo ideologia, a
grande crítica tecida às categorias “acusatório” e “inquisitório” não pode
ela mesma se colocar num estado letárgico de imunização à ideologia.
Naturalmente que correspondem a certos embaraços metodológicos
causados pela tentativa de reduzir a multissignificatividade dos concei-
tos acusatório e inquisitório a um chão bem medido e calculado de redu-
ção sígnica. Entretanto, em se levando em consideração que a crítica se
estabelece virtualmente como identificação de um insuportável excesso
de significação derivado daquelas categorias, e, para além disso, contan-
do que a crítica se faz ela própria igualmente ideológica, muito pouco se
acresce com a substituição das categorias acusatório e inquisitório por
outra qualquer. O denuncismo de anacronismo ou superação das catego-
rias acusatório ou inquisitório torna pouco palpáveis as bordas de som-
breamento registradas no maquinismo autoritário que corresponde a um
processo penal “consensualmente” orquestrado a partir de significantes
“ideologicamente neutros”. É justamente na confluência entre político e
jurídico – ocupado pelo binômio pena-processo – que as opções devem
se fazer claras
31
. Se, em atenção às categorias invocadas por Damaska, há
31 Cf .COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. "Por Que Sustentar a Democracia do Sistema Processual Penal Brasi-
leiro?"
In
Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica,
n. 14. Belo Horizonte, 2013.