

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 378 - 408, jan - fev. 2015
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Processo Penal Pós-Acusatório?
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Sloterdijk descreve o cinismo como uma nova face da ideologia.
Dessa maneira, o pensador alemão cuida de produzir uma inversão, de
maneira oximorônica, da performance antitética de uma falsa consciência
ilustrada
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. Se para Marx a ideologia poderia se apresentar como uma es-
tética de velamento que encontra seu ponto ótimo na máxima do valor da
mercadoria, verifica-se que a ideologia se apresenta como que inarreda-
velmente engolfada pelos conceitos de alienação e de falsa consciência.
Nesse sentido, como aponta Zizek, a máxima marxiana seria apreendida
por um “eles não sabem o que fazem”. Evidentemente, a crítica marxiana
é, a despeito dessa categoria, ingênua, tendo em vista que acaba por se
autoinstituir como um pretenso instrumento de desvelamento das rela-
ções sociais materiais.
A crítica da razão cínica, de Sloterdjk, ao se apresentar como uma
“falsa consciência ilustrada”, permitiria, mais uma vez de acordo com Zi-
zek, a sua concretização como um “eles sabem o que fazem, mas mesmo
assim o fazem”. Esta razão cínica deixa de lado aquele atributo de suma
ingenuidade, para se assumir como uma espécie de espelho convexo de si
mesma, garantindo, com isso, duas coisas: a) a perpetuação da ideologia
e não justamente o que lhe imputou o pensamento neoliberal, de sua
autodestruição; b) a transformação da ideologia numa ideologia de se-
gundo grau (ideologia da ideologia
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), que funciona através da catarse, da
metonímia (tomar a parte pelo todo). Se, a partir de então, a ideologia se
apresenta mais ideológica do que a ideologia, parafraseando aqui o pen-
samento de Baudrillard, a ideologia se cristalizaria numa tropologia trans-
política. A ideologia, portanto, se apresentaria metafórica por excelência.
Retornemos ao pensamento de Sloterdijk, por um minuto, a fim de
lhe dar, novamente, voz. O cinismo não tolera a transgressão direta da re-
gra, muito menos a sua assunção. Exige o cínico um prefigurar, um estádio
prévio, que duplica a imagem do objeto, na cisão entre o sujeito de enun-
ciação e enunciado. O cinismo, portanto, faz derivar um objeto de sua
antítese, faz surgir uma fenda, uma ferida irrecuperável entre o sujeito da
21 Este tema foi parcialmente desenvolvido em GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. "Transpolíticas do Imaginário (Puni-
tivo) ou a Codificação da Sedução."
In
Revista Sistema Penal & Violência.
V. 5. n. 2. Porto Alegre, 2013, p. 252-264.
22 Cf. SLOTERDIJK, Peter.
Crítica da la Razón Cínica
. Madrid: Siruela, 2004.
23 ZIZEK, Slavoj. "O Espectro da Ideologia".
In
_______.
UmMapa da Ideologia.
São Paulo: Contraponto, 1996, p. 25.