Background Image
Previous Page  390 / 590 Next Page
Basic version Information
Show Menu
Previous Page 390 / 590 Next Page
Page Background

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 378 - 408, jan - fev. 2015

390

Processo Penal Pós-Acusatório?

21

Sloterdijk descreve o cinismo como uma nova face da ideologia.

Dessa maneira, o pensador alemão cuida de produzir uma inversão, de

maneira oximorônica, da performance antitética de uma falsa consciência

ilustrada

22

. Se para Marx a ideologia poderia se apresentar como uma es-

tética de velamento que encontra seu ponto ótimo na máxima do valor da

mercadoria, verifica-se que a ideologia se apresenta como que inarreda-

velmente engolfada pelos conceitos de alienação e de falsa consciência.

Nesse sentido, como aponta Zizek, a máxima marxiana seria apreendida

por um “eles não sabem o que fazem”. Evidentemente, a crítica marxiana

é, a despeito dessa categoria, ingênua, tendo em vista que acaba por se

autoinstituir como um pretenso instrumento de desvelamento das rela-

ções sociais materiais.

A crítica da razão cínica, de Sloterdjk, ao se apresentar como uma

“falsa consciência ilustrada”, permitiria, mais uma vez de acordo com Zi-

zek, a sua concretização como um “eles sabem o que fazem, mas mesmo

assim o fazem”. Esta razão cínica deixa de lado aquele atributo de suma

ingenuidade, para se assumir como uma espécie de espelho convexo de si

mesma, garantindo, com isso, duas coisas: a) a perpetuação da ideologia

e não justamente o que lhe imputou o pensamento neoliberal, de sua

autodestruição; b) a transformação da ideologia numa ideologia de se-

gundo grau (ideologia da ideologia

23

), que funciona através da catarse, da

metonímia (tomar a parte pelo todo). Se, a partir de então, a ideologia se

apresenta mais ideológica do que a ideologia, parafraseando aqui o pen-

samento de Baudrillard, a ideologia se cristalizaria numa tropologia trans-

política. A ideologia, portanto, se apresentaria metafórica por excelência.

Retornemos ao pensamento de Sloterdijk, por um minuto, a fim de

lhe dar, novamente, voz. O cinismo não tolera a transgressão direta da re-

gra, muito menos a sua assunção. Exige o cínico um prefigurar, um estádio

prévio, que duplica a imagem do objeto, na cisão entre o sujeito de enun-

ciação e enunciado. O cinismo, portanto, faz derivar um objeto de sua

antítese, faz surgir uma fenda, uma ferida irrecuperável entre o sujeito da

21 Este tema foi parcialmente desenvolvido em GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. "Transpolíticas do Imaginário (Puni-

tivo) ou a Codificação da Sedução."

In

Revista Sistema Penal & Violência.

V. 5. n. 2. Porto Alegre, 2013, p. 252-264.

22 Cf. SLOTERDIJK, Peter.

Crítica da la Razón Cínica

. Madrid: Siruela, 2004.

23 ZIZEK, Slavoj. "O Espectro da Ideologia".

In

_______.

UmMapa da Ideologia.

São Paulo: Contraponto, 1996, p. 25.