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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 378 - 408, jan - fev. 2015

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sentam, na mais pura espectralidade, aquelas contradições ontologiza-

das, diagnósticas de um maniqueísmo entre aparência e realidade. E é

justamente através de Marx e de seu materialismo que se poderia chegar

à conclusão dessa espectralidade ancestral. Não existe realidade sem es-

pectro. A realidade apenas pode ser compreendida a partir de uma espé-

cie de suplemento espectral, deste diferimento sem medida, sem rastro,

deixado pelas bordas do simbólico. Por certo que essa compreensão não

era desconhecida da hermenêutica filosófica e de todo o movimento da

linguistic turn.

Para Lacan, a realidade já é sempre reduto do simbólico,

subjetivizada, “socialmente construída”, se se quiser, a partir da sociolo-

gia construtivista de Berger e Luckmann

27

. Todavia, a simbolização sempre

tende ao fracasso, pois não consegue simbolizar completamente o Real.

Sempre há excedência (sem excesso) do Real em relação ao simbólico.

“Este real (a parte da realidade que permanece não simbolizada) retorna

sob a forma de aparições espectrais”

28

. Trata-se dessa aparição espectral

que colmata a lacuna do Real. Para que a realidade apareça enquanto tal,

algo deve sofrer um processo de foraclusão.

Essa fantasia ideológica, essa espectralidade, se apresenta mais

claramente na completa injustificação da lei, daquela ausência de funda-

mento que a erige, que a promove a partir de um pensamento tautológi-

co. Disso já se ocupou Benjamin

29

em sua

Para Uma Crítica da Violência

e de maneira ainda mais profunda e radical, Derrida

30

, em

Sua Força de

Lei

. A tautologia fundante de “a lei é a lei” comprova que o ato fundador

não passa de violência.

Se, portanto, a ideologia não pode aparecer meramente como um

descortinamento daquela realidade serviçal à dominação, se tampouco

pode ser subsumida ao cinismo tal qual compreendido por Sloterdijk - en-

quanto falsa consciência ilustrada - deve-se ter em mente que, portanto,

não resta alternativa senão a de colocar a ideologia em um ponto externo,

simbiótico, em relação a si mesma. Essa a razão pela qual uma crítica da

ideologia se traveste da mais pura ideologia. Essa a razão por que a crítica

da ideologia sempre carrega consigo um vício insanável de se autoprocla-

mar um “mais-que-um”, um fantasma quiçá “autopoiético”. Pensar numa

27 BERGER, Peter L; LUCKMANN, Thomas.

A Construção Social da Realidade:

tratado de sociologia do conhecimen-

to. Petrópolis: Vozes, 2003.

28 ZIZEK, Slavoj. "O Espectro da Ideologia".

In

_______.

UmMapa da Ideologia

. São Paulo: Contraponto, 1996. p. 26.

29 BENJAMIN, Walter. "Para Uma Crítica da Violência".

In

Escritos SobreMito e Linguagem.

São Paulo: Duas Cidades, 2011.

30 DERRIDA, Jacques.

Força de Lei:

o fundamento místico da autoridade. São Paulo: Martins Fontes, 2011.