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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 507 - 515, jan - fev. 2015

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gos administrativos ou comissões de verdade. O primeiro eixo consiste

na suposição da verdade como marcador de distinção entre o antigo e o

novo regime (KRITZ, 2004), isto é, entre autoritarismo e democracia. O se-

gundo afirma uma vocação pedagógica dos processos de esclarecimento

sobre o passado agressor. Nesta perspectiva, a verdade e sua publicidade

seriam antídotos contra a repetição do infortúnio, pois fundariam a pos-

sibilidade de uma história comum, conhecida e aceita por todos (ZALA-

QUETT, 2004; ALBON, 2004; MINOW, 1998). Em seguida, no terceiro eixo,

a verdade é afirmada como restituidora de dignidade às vítimas (TUTU,

2000; BORAINE, 2000; ALBON, 2004; MINOW, 1998). Por fim, a verdade é

descrita como instrumento de reconciliação nacional, apta a reaproximar

setores antagônicos de longa data (TUTU, 2000; BORAINE, 2000; ALBON,

2004; MINOW, 1998). O sentido comum aos quatro eixos é o de unidade

social, em contraponto marcado com a condição dividida das sociedades

sob regimes autoritários.

Embora diversas, as formas políticas da verdade convergem, por-

tanto, em torno de acordos normativos fundamentais

3

e o dissenso tende

a se estabelecer num plano inferior ao dos princípios, relativo aos meios.

Neste sentido, a discordância sobre aplicar a verdade como causa final

(caso das comissões de verdade) ou intermediária

4

(caso de processos pe-

nais que têm a justiça formal como telos) não escapa ao entendimento

comum da verdade como instrumento de democracia, pedagogia, digni-

dade e reconciliação, conforme os quatro tópicos apenas referidos. O ar-

gumento de Jaime Malamud-Goti, ex-Procurador-Geral da Argentina, em

favor da punição de antigos agressores

5

não destoa, por exemplo, dos ter-

3 Esta afirmação toma como referência a literatura canônica sobre justiça de transição. Há autores desviantes em re-

lação aos consensos normativos referidos. John Elster, por exemplo, diverge do próprio princípio de verdade aplica-

do à política. Ele comprometeria a justiça. Elster contabiliza vinte comissões da verdade criadas desde 1982 que não

nomearam violadores de direitos (ELSTER, 2004). Os procedimentos de justiça legal, desejáveis, seriam comumente

violados em processos de justiça de transição, conduzidos em circunstâncias excepcionais. Ao comentar especifi-

camente os mecanismos de restituição nos países egressos do comunismo, Elster opina que “porque é impossível

alcançar a todos, então ninguém deveria ser punido e ninguém deveria ser compensado” (ELSTER, 2004, p. 566)

4 Há mesmo quem insista numa harmonia de princípios entre os usos finalístico e instrumental da verdade na polí-

tica. Priscila Hayner reage à suposição de que eles se excluem mutuamente e recusa a “suspeita de que comissões

de verdade tendem a enfraquecer as possibilidades de justiça nos tribunais ou mesmo de que as comissões são

por vezes intencionalmente empregadas como um meio de evitar controles mais rigorosos.” (HAYNER, capítulo 8).

Segundo Hayner, as comissões poderiam ser complementares aos processos judiciais, providenciando informações

que não estariam ao alcance dos tribunais. Não haveria, para ela,

trade off

entre justiça e verdade, o que é suposição

avessa à de Elster (ver nota 3).

5 Para Malamud-Goti, “além de restaurar a dignidade das vítimas, o processo judicial também ajuda a curar a so-

ciedade como um todo, restabelecendo uma realidade comum que pode servir como base para a cooperação e a

reconfiguração moral, substituindo as realidades individuais, isoladas, que resultaram de uma coesão social fratu-

rada” (

apud

ALBON, 2004, p. 53).