

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 378 - 408, jan - fev. 2015
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turalizar as práticas autoritárias, a partir de um ponto-zero de remissão
sígnica a um significante a lhe emprestar significado. Veja-se, de acordo
com Legendre
9
, que sob a perspectiva de uma antropologia dogmática, é
justamente sob o encadeamento de textos que se encontra o mecanismo
instrumental para o ordenamento jurídico auferir sua pretensa racionali-
dade. O resultado é o de que as práticas autoritárias contemporâneas, à
margem da orfandade sígnica ou do vazio textual constitutivo da moder-
nidade processual penal, são tomadas como uma mera disfunção, quando
se sabe serem elas justamente o produto de um imaginário policialesco
que governa as pulsões políticas no campo do processo. Para se fazer uma
justa homenagem a Lola Aniyar de Castro
10
: o direito penal subterrâneo
é menos direito penal do que aquele decorrente do monopólio da vio-
lência estatal? Um “processo” penal inquisitório (impossível, nas palavras
de Montero Aroca), tomado como o objeto inacessível, interditado, rein-
gressa sempre através de pequenos objetos “a”, para ficar com Lacan
11
.
Com isso se quer dizer que o abandono dos sistemas processuais penais,
em que pese não se possa imputar uma relação de causa-efeito, tende a
fortalecer as práticas autoritárias que são ressignificadas
12
a partir da mo-
dernidade e, no processo penal contemporâneo, a partir do movimento
neoconstitucionalista pós-guerra. Sem um marco claro de tensionamento
das categorias processuais, o resultado é tendência ao conformismo com
as práticas punitivas, que sofrem verdadeiro processo de reconstituição
(não desaparecimento ou abandono).
Algumas tentativas vêm sendo empreendidas para se tentar ultra-
passar os sistemas processuais penais. A mais importante delas, a nosso
juízo, deriva de uma conciliação entre uma teoria política da democracia e
outra que encontra nas análises sobre o modelo adversarial um importan-
te campo de estudo sobre como enfrentar as questões da complexidade
penal sem o recurso à tradição dos sistemas processuais.
9 Cf. LEGENDRE, Pierre.
Della Società Comme
Testo:
lineamenti di un’Antropologia Dogmatica.
Trad. de Elisa Sca-
tollini i Paolo Heritier. Torino: Giappichelli, 2005. Cf. LEGENDRE, Pierre.
Leçons IV. El Inestimable Objeto de la
Transmissión.
Madrid: Siglo XXI, 1996.
10 ANYIAR DE CASTRO, Lola.
Criminologia da Libertação
. Rio de Janeiro: Revan, 2005.
11 LACAN, Jacques.
O Seminário v. 10
: "A Angústia". Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
12 Note-se que Nietzsche, na Genealogia da Moral, alerta para a ressignificação, quando afirma que existe um
verdadeiro abismo entre os usos originários de um signo e aqueles que se podem dar sobre o mesmo signo, pos-
sibilidade esta sempre disponível. Sobre a noção de ressignificação Cf. BUTLER, Judith.
Mecanismos Psíquicos del
Poder:
teorias sobre la sujeción
. Valencia: Ediciones Cátedra, 1997.