

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 17, n. 66, p. 114 - 137, set - dez. 2014
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Outra retórica que se ouve por aí é que já temos problemas demais
com o álcool e o tabaco, razão pela qual pensar emmais drogas tornando-
-se lícitas seria um contrassenso, que a coletividade merece ser protegida
pelo Direito Penal. Este argumento parece ser idôneo e necessário, por
isso mesmo é o mais nocivo e merece uma abordagem mais ampla. Há
tempos aplica-se este discurso, “em prol da sociedade”, restringindo direi-
tos e liberdades “em prol da tão esperada segurança”, típico de políticas
reducionistas que prometem resolver vários problemas com uma única
atitude/ferramenta. Na inquisição, os hereges, e pagãos eram executados
sob o argumento da “vontade de Deus”, porque contrariavam qualquer
dogma imposto pela igreja católica. Cita-se como exemplo Pelágio da
Bretanha
4
, que defendia a capacidade que o homem possui de decidir o
seu futuro por
livre-arbítrio,
sem necessariamente depender da
graça
de
Deus, baseando-se no fato de pessoas resistirem por sua própria vontade
a tudo que se refere a Deus, ao Criador, e à necessidade de pertencer a
Ele. Por esses pensamentos, Pelágio foi excomungado e condenado como
herege. A inquisição estava para Igreja Católica assim como o Direito Pe-
nal está para os Governos atuais, ferramenta aparentemente útil e eficaz
que, na verdade, serve para oprimir e penitenciar os que descumprem as
políticas escusas determinadas por quem governa. Cesare Beccaria, já em
1764, nos ensinava sobre as “falsas ideias de utilidade”,
in verbis
: “Falsa
ideia de utilidade é a que sacrifica mil vantagens reais por um inconve-
niente imaginário ou de pequena importância; a que tiraria dos homens o
fogo porque incendeia, e a água porque afoga; que só destruindo repara
os males. Denominam-se leis temerosas dos crimes e não leis preventi-
vas; nascem da impressão tumultuária de alguns fatos particulares e não
de meditação ponderada dos inconvenientes e vantagens de um decreto
universal
5
.” O sacrifício de uma liberdade que, se exercida, pode trazer
enfermidades para sociedade tem que ser ponderado com os males que
emergem deste sacrifício. Basta compararmos o raciocínio supracitado,
substituindo drogas por outro tema análogo e também delicado, que ve-
remos o quão frustrado se torna aquele tipo de contra-argumento. Exem-
plificando: se já temos problemas demais com o casamento entre homens
e mulheres (crimes contra a vida, contra a incolumidade física, moral, des-
dobramentos previdenciários, sucessórios, Direito de família, e por aí vai)
4 Pelágio da Bretanha (350 — 423) foi um monge ascético, nascido provavelmente na Britânia.
5 BECCARIA, Cesare.
Dos Delitos e Das Penas.
Obra datada de 1764 , traduzida por Vicente Sabino Júnior diretamen-
te da edição italiana de Gian Domenico Pisapia; editora CD. São Paulo. 2006. Fls. 129.