Revista Magistratus - Número 6 - Dezembro 2018 - Edição Comemorativa
32 33 Revista Magistratus 2018 2018 Revista Magistratus TUPRO por Larissa de Mello Beckman a cultura do estupro VITIMIZAÇÃO E O GÊNERO FEMININO: O s estudos interdisciplinares têm contribuído para um me- lhor entendimento do fenô- meno da criminalidade, de forma a pro- porcionar meios para sua prevenção e resolução, a partir de um novo direcio- namento do olhar do Direito: às vítimas e aos danos a elas causados. Analisando mais profundamente os fenômenos da vitimologia e da violência de gênero, torna-se clara a existência da chamada “cultura do estupro” . Falar em “cultura do estupro”, ao contrário do que se possa pensar, não sig- nifica um apoio da população a esse tipo de crime, mas um caldo cultural que resul- ta em dados alarmantes e na ocorrência cada vez mais frequente desse crime. Só no estado do Rio de Janeiro, 4128 mulheres já foram vítimas de es- tupro. Enquanto isso, um terço da po- pulação brasileira acredita que estupros ocorrem em consequência do compor- tamento das vítimas (Dossiê Mulher). 42% dos homens declararam que “mu- lheres que se dão ao respeito não são estupradas”, o que explica a razão pela qual, segundo a mesma pesquisa, 85% das mulheres têm medo de ser vítima de agressão sexual (Fórum Brasileiro de Se- gurança Pública/Datafolha 2016). As mulheres se veem, assim, cer- cadas por uma sociedade na qual suas atitudes e comportamentos podem ge- rar uma má reputação que se torna uma “justificativa” para o cometimento de um crime contra elas. Diante dessa estrutura, os discur- sos criminológicos feministas passaram a se preocupar com as vítimas de crimes de violência doméstica e sexual e com a ausência destas nos focos de discussão Ao utilizar os estudos vitimológi- cos para dissecar o fenômeno da violên- cia contra a mulher, é essencial manter em mente que o conceito de gênero como uma diferença entre os sexos foi socialmente construído. Conforme a Declaração dos Prin- cípios Básicos de Justiça para as Vítimas de Delitos e Abusos de Poder, da ONU (Organização das Nações Unidas), ví- timas são pessoas que sofreram danos, sejam eles físicos, mentais, emocionais ou financeiros, de maneira individual ou coletiva, como consequência de ação ou omissão que transgridem a legislação pe- nal vigente no território nacional. A vitimização, por sua vez, é o es- tudo das consequências negativas de um fato traumático. Segundo a classificação de Lélio Braga Calhau, existem três as- pectos da vitimização: a vitimização primária é o padecimento momentâneo e direto que aquele fato ocasionou na vida da vítima; a vitimização secundária, também conhecida como sobrevitimiza- ção, ocorre no momento em que a ví- tima procura pelo sistema de Justiça. É compreendida como a vitimização que é gerada pelas instâncias formais de Poder e engloba os custos pessoais derivados da intervenção do sistema legal que ma- ximizam os padecimentos da vítima; já a vitimização terciária ocorre quando a Um terço da população brasileira acredita que estupros ocorrem em consequência do comportamento das vítimas “ ” dos estudos da Criminologia tradicional, voltando sua crítica ao tratamento dado às mulheres como parte da estrutura es- tatal do processo criminal. ESPAÇOALUNO vítima está em contato com o grupo fa- miliar ou em seu ambiente social. Diante do quadro apresentado de uma sociedade que julga as vítimas de crimes sexuais e as coloca em situação de revitimização, urge analisar a visão do Ju- diciário quanto ao tema nos últimos anos. Não se tem neste artigo a intenção de afirmar que há um pensamento unís- sono, mas sim de demonstrar a evolução do pensamento jurisprudencial ao longo dos anos. Em primeiro lugar, é importante destacar o fato de o estupro, e os crimes sexuais como um todo, sofrerem de uma subnotificação, ou seja, apenas uma par- cela dos crimes ocorridos chega a ser no- tificada às autoridades policiais. A Pes- quisa Nacional de Vitimização verificou que, no Brasil, somente 7,5% das vítimas de violência sexual registram o crime na delegacia. Por consequência, parcela me- nor ainda acarreta processo judicial. As informações acerca de jurispru- dência a serem apresentadas neste artigo foram retiradas de julgados do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Jus- tiça do Rio de Janeiro, através de seus websites e mecanismos de busca. Começando pelo Superior Tribu- nal de Justiça: a análise quantitativa de suas decisões sufraga a tese de suficiên- cia probatória da palavra da vítima para condenações criminais em delitos sexu- ais. Qualitativamente, observou-se que o fundamento central dos acórdãos se cinge ao regular modo de execução do delito, às escondidas, de onde resulta a ausência de testemunhas. Não se vislumbrava qualquer argu- mento próprio à teoria feminista até no- vembro de 2016, quando o Superior Tri- bunal de Justiça divulgou o Informativo de Jurisprudência nº592 , o qual afirma a existência de estupro em um caso de beijo lascivo no carnaval, baseando-se na exis- tência de uma cultura do estupro e men- cionando a teoria feminista do direito. Já a pesquisa no site do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro revela, de plano, uma grande quanti- dade de acórdãos quando empregado o paradigma de busca “crime sexual”. Encontrou-se aproximadamente 1400 (mil e quatrocentos) acórdãos, dentro do lapso temporal da última década (2008 a 2018). Considerando apenas o ano de 2018, são encontrados 127 acórdãos, o que demonstra um aumento no número de processos em relação à mesma época dos anos anteriores; porém, um número ainda muito reduzido perante a realidade da ocorrência de tais crimes. É preciso refletir sobre as relações entre vítima e sistema penal, buscando dar-lhe melhor assistência intra e extra- judicial. Diante de todo o exposto, fica evidente que o esforço mais significativo para a prevenção dessa cultura do estu- pro precisa estar centrado na educação de meninos e meninas, na formação dos profissionais que atenderão as vítimas, seja na saúde ou no Judiciário, e na in- corporação da perspectiva de gênero voltada para a prevenção de violência contra mulheres, abordando seu impac- to sobre as vítimas, os perpetradores e a sociedade como um todo. • Larissa de Mello Beckman Pós-graduada em Direito Público e Privado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Bacharel em Direito. Advogada
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