Revista Magistratus - Número 2 - Setembro 2017
20 Revista Magistratus 2017 E la cresceu na França, estudou na Espanha e nos Estados Unidos, mas foi no Brasil que conseguiu resgatar sua própria identidade. Charlotte Cohen Tenoudji descobriu que se chama Isabella dos Santos, filha de uma empre- gada doméstica de São Paulo. Hoje, aos 30 anos, a professora de francês já tem carteira de identidade brasileira, mas ainda quer mudar oficialmente o nome para Isabella, como gosta de ser chamada. Ainda na adolescência, ela começou um verdadeiro trabalho de detetive para descobrir sua origem. “Eu sempre soube que era adotada. Meus traços demostravam que eu era estrangeira. Lá na França qualquer pessoa sabia que eu não era francesa. Na escola, as pessoas sempre comentavam e perguntavam: de qual país você é? De onde você é? No meu documento da escola constava que eu tinha nascido fora. Isso nunca foi um segredo”. Cada vez que perguntava para a mãe francesa como tinha sido o processo de adoção, ela ouvia uma história diferente. A relação com os pais adotivos era difícil. Isabella conta que o pai era alcoólatra e agressivo: “Havia muitos conflitos, meu pai me insultava, era violento. Eu não entendia porque estava naquele lugar”. Aos 14 anos ela encontrou, no escritório do pai adotivo, uma pasta com papéis que revelavam parte da sua história, como o lugar onde havia nascido, um exame com o tipo sanguíneo, uma certidão de nascimento com o endere- ço de São Paulo, um recibo em nome de uma mulher chamada Guiomar e o passaporte usado para retirá-la do Brasil. Isabella chegou ao Brasil em 2012 e foi morar no Rio de Janeiro para resgatar o passado. Entrou em contato com pessoas cujos nomes constavam nos documentos encontrados na França, mas não conseguiu respostas. Foram cinco anos de buscas e cruzamento de dados até que, no início deste ano, o resultado do teste de DNA confirmou que a professora de francês é filha de Jacira dos Santos, empregada doméstica morta em 1991. Ela descobriu também que tem uma irmã mais nova, que foi adotada e mora na Europa, além de um irmão e outra irmã, que vivem no Brasil. O rfanato dos horrores Em 2014, um inquérito foi instaurado no Ministério Público para investigar o orfanato Lar da Criança Menino Jesus. O caso foi divulgado em toda a imprensa. Uma das manchetes trazia o título: “Orfanato dos horrores - A incrível investigação do Ministério Pú- blico sobre um abrigo de órfãos que, em pleno século XX, traficava crianças”, tema de reportagem da Revista IstoÉ, na época. A jovem prestou depoimento na Comissão Parlamentar de Inquérito do Tráfico de Pessoas. “Quando minha história come- çou a ser divulgada na mídia, algumas pessoas me procuraram Char lot te x I sabe l l a: o resgate de uma identidade para dizer que cresceram na França e que também tinham sido adotadas com a ajuda da Guiomar. Elas que- riam saber das famílias, mas tinham medo e pediam minha ajuda”. A professora Isabella descobriu que nasceu em abril de 1987 e que a mãe dela era empregada doméstica da casa de Guiomar e Franco Morselli, administrado- res do Orfanato Lar da Criança Menino Je- sus, na capital paulista. Ao acionar a Justiça brasileira, ajudou a desvendar o tráfico neste orfanato, que teria enviado crianças ao exte- rior ilegalmente nas décadas de 1980 e 1990. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), o casal Morcelli, acusado de prati- car tráfico internacional de crianças, abri- gava mulheres grávidas que não queriam ter filhos. Quando elas davam à luz, entregavam os bebês a Guiomar, que cuidava do processo de adoção clandestina. Estima-se que a supos- ta adoção de Isabella tenha rendido mais de R$ 100 mil. Guiomar é ré por tráfico de pessoas em ação civil pública ajuizada pelo MPF. Escrever um livro contando toda a sua his- tória é um dos projetos de Isabella. Ela também pretende criar uma ONG (Organização Não Go- vernamental) para fazer um trabalho de educação sexual com as mulheres e impedir o tráfico de pes- soas, o que ela considera ser consequência da histó- ria da escravidão no Brasil. “A minha reflexão é esta: tudo isso vem de quê? Tudo isso vem da escravidão, é um avatar da escravidão, do tráfico de escravos, da his- tória do nosso país. Para mim, foi importante conhe- cer essa palavra: tráfico. As pessoas falavam em adoção, mas quando eu via a minha história, eu pensava: não, deve ter outro nome para o que aconteceu, e esse nome é tráfico. E tudo ficou mais claro na minha cabeça”, con- cluiu Isabella. A história real contada por uma vítima de tráfico humano INSTITUCIONAL Fórum Permanente de Violência Doméstica, Familiar e de Gênero Fórum Permanente de Direitos Humanos
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