Revista da EMERJ - V. 24 - n.3 - Maio/Agosto - 2022

 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 24, n. 3, p. 206-244, Set.-Dez. 2022  221 dida como uma mera sociedade , na acepção contratual do termo: uma união de sócios por vínculos de interesse para a consecução de um mesmo fim. Sem negar a importância do desejo indivi- dual, já foi bem observado que a comunidade é, sobretudo, um fe- nômeno moral. Sem essa importante dimensão solidária, o homo economicus do capitalismo faria a coletividade degenerar a um estado de anomia 8 . Ademais, a maioria das críticas arguidas ao processo coo- perativo parece derivar de um zelo liberal excessivo e conserva- dor. Reclama-se, por exemplo, da possibilidade de o juiz intimar uma das partes a complementar sua narrativa com fatos impor- tantes ao deslinde da causa. Cumpre questionar se é legítimo os litigantes ocultarem parte dos acontecimentos, induzindo o juiz a erro. O dever de boa-fé processual, já consagrado, impõe a obrigação de expor os fatos conforme a verdade (art. 77, I), o que, numa perspectiva liberal, resume-se a uma ética negativa: não mentir, não interferir na esfera do outro. Isso, contudo, tal- vez seja insuficiente. Ninguém espera que a versão da parte seja neutra ou valorize aspectos desvantajosos para si. Mas, uma vez provocada sobre um ponto específico, será legítimo a ela invo- car o direito de omitir a verdade porque seu interesse é vencer, ainda que injustamente? Estando essa mesma parte em posse de provas documentais fundamentais, indisponíveis ao outro liti- gante, não é razoável que seja intimada a apresentá-las? Pode o executado deliberadamente ocultar um veículo penhorável ou recusar-se a fornecer o endereço de um corréu só porque não tem interesse no prosseguimento da ação? Decerto ninguém é fisica- mente obrigado a colaborar (e o art. 379 o garante), mas deve as- sumir o ônus processual de sua recusa injustificada, o que pode 8 Para Durkheim, anomia é um fenômeno patológico caracterizado pelo enfraquecimento moral de uma sociedade, o que prejudica sua coesão. É marcado nas sociedades modernas pela perda das formas tra- dicionais de convivência sem a reposição de novos vínculos de pertencimento, resultando em relações anárquicas e conflituosas. A esse respeito: “Que tal anarquia seja um fenômeno mórbido, é mais que evi- dente, pois ela vai contra o próprio objetivo de toda sociedade, que é suprimir ou, pelo menos, moderar a guerra entre os homens, subordinando a lei física do mais forte a uma mais alta. Em vão, para justificar esse estado de não-regulamentação, salienta-se que ele favorece o desenvolvimento da liberdade individual. Nada mais falso do que esse antagonismo que se quis estabelecer, com excessiva frequência, entre a auto- ridade da regra e a liberdade do indivíduo. Muito ao contrário, a liberdade (entendemos a liberdade justa, aquela que a sociedade tem o dever de fazer respeitar) é, ela própria, produto de uma regulamentação” (DURKHEIM, 1999, p. 7-8).

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