Revista da EMERJ - V. 24 - N. 2 - Maio/Agosto - 2022
19 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, p. 9-25, Mai.-Ago. 2022 ampla de acesso à Justiça, que os juizados especiais ampliaram ainda mais, como temos dito. Ou seja, certas normas de berço cultural tornam-se exa- tamente o oposto do conceito etnológico e antropológico mais digno de cultura, numa prova de que a distinção da polissemia que esse conceito encerra pode ser a chave para a compreensão do paradoxo. Em outras palavras, quando uma tradição cultu- ral normótica começa a fazer naufragar uma civilização, é exata- mente a cultura em seu estado vivente e puro que permite que essa mesma civilização se salve do naufrágio, seja pela reinven- ção de si mesma, seja pelos novos caminhos encontrados no es- teio da sua cultura mais perene, pois é daí que se averiguarão os costumes que servirão de base à legislação do futuro, muitas vezes urgente no próprio presente. Então retomamos isotopicamente a questão: todas as tradi- ções culturais são verdadeiramente tradições culturais que devem irrefletidamente ser deixadas de lado, sem questionamento? O fato é que muitas vezes se trata de tradições culturais que, não repentinamente, mas aos poucos, transformaram-se em imensas normoses. “Normais” desgastados e patogênicos. E seu destino, como comprova a Antropologia (mais até do que a História), é o naufrágio. Esse naufrágio leva consigo a civilização que navegava nesse navio. E outra civilização nasce, às vezes dos escombros da civili- zação naufragada. A cultura faz naufragar e a cultura faz renascer. Como na dialética hegeliana, as sociedades se sustentam sobre pilares de conservação (tese) e inovação (antítese), e, da fricção entre uma e outra, nasce uma síntese , que desmorona o que já não possui razão para prosseguir, tanto no seu lado conservativo quanto nas falaciosas “inovações” que, porven- tura, não passem de meros modismos, invencionices ou no- vidades para serem consumidos e descartados. A síntese é o julgamento do que há de justo na conservação e o que há de justo na inovação. São forças que os filólogos clamaram à Fí- sica newtoniana para criar a metáfora sociológica de força
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