Revista da EMERJ - V. 24 - N. 1 - Janeiro/Abril - 2022

 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 71-94, Jan.-Abr. 2022  89 o empenho do Estado para resguardá-la não tornam consistente sua adesão às propostas instituídas (às leis implementadas), que nunca são executadas de forma completa ou sem resistência. No Brasil, conquanto a infância passe a ser regulamentada pelo Estado – estabelecendo sua faixa etária, as competências e as proteções devidas –, este não consegue impedir eventuais trans- gressões diante dos movimentos para a adequação das famílias e suas proles ao projeto político-econômico hegemônico, como seu tutoramento e higienização 11 . Considerando que, ao longo do tempo, crianças foram deixando de ocupar o lugar de “adultos mirins” para se converterem em “futuro da nação” – um futuro que nunca se estendeu a todas –, elas passaram a ser alvo de in- vestimento do Estado. Focado na (re)produção do ciclo econômico vigente, o Es- tado buscou garantir ( minimamente) a sobrevivência das crian- ças – especialmente as que viviam à margem da sociedade. A infância tornou-se um propósito político, constructo ideológico e instrumento para o desenvolvimento social e econômico do país. É a chamada menorização – a qual implica considerar a criança um ser menor , desconceitualizando-a.  Todavia, é entre as crianças mais pobres que esse processo atua de forma acentuada, penalizando-as duplamente. Subme- tidas às dificuldades de subsistência e às ideologias de subordi- nação, essas crianças (e suas famílias) são desabilitadas de seu potencial, reguladas e sujeitadas em nome de um “cuidado” e “proteção” que, contudo, não democratiza a acessibilidade aos meios de produção e a uma vida mais segura e digna, de modo que, frequentemente, lhes reste como possibilidade a transgressão. Não obstante, transgredir não significa unicamente promo- ver algo ilegal. Averdadeira transgressão subentende ir além dos parâmetros impostos, rompendo com eles. Consequentemente, 11 O conceito de higienização reporta ao modo pelo qual o Estado (e consequentemente, a sociedade) impõe e reforça certos hábitos visando à produtividade, sem se preocupar com a realidade e a cultura dos envolvidos. Nesses casos, uma ideia aparentemente salutar (como a limpeza, por exemplo) torna-se manifestação de autoritarismo e violência, uma vez que passa a ser imposta “para o bem comum” sem levar em consideração as condições existenciais dos envolvidos (como a falta de sanitarismo e urbanismo no meio onde vivem).

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