Revista da EMERJ - V. 24 - N. 1 - Janeiro/Abril - 2022

 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 71-94, Jan.-Abr. 2022  88 Em tal contexto, a cidadanização sempre incorre na adesão de uma proposição externa (na forma de leis) que exige certo grau de cessão da autonomia decisória individual para responder às adequações preconizadas para a concessão de seus direitos 9 . Todavia, apesar de sua construção autoritária, esse proces- so não se manifesta unilateralmente. Se, por um lado, as famílias têm suas condutas sistematizadas e sabatinadas, por outro, são potencialmente capazes de encontrar subterfúgios para atuação. A população a quem esses direitos se destinam não desempenha apenas papel passivo; ela muitas vezes altera as disposições por estes previstas, transformando seus resultados em algo bem di- verso do esperado. III. A INFÂNCIA TRANSGRESSORA Embora represente uma das etapas do desenvolvimento humano, a infância (do latim infantia , onde fan = falante e in = prefixo de negação) refere-se ao período da vida no qual a au- sência de voz implica em subordinação e falta de poder decisório sobre as ações da própria existência. Seu significado ultrapassa as condições físicas e morfológicas para se estender na metáfora – simboliza uma desqualificação do sujeito que, através da tute- la, é subalternizado, enquadrado como menor 10 . Apesar da história da infância ter sido escrita pela elite – por juristas, médicos, policiais, legisladores, comerciantes, pa- dres, educadores (CUSTÓDIO, 2006) –, algumas das condições (e peculiaridades) que a atravessavam nunca se alteraram. Forjada pelo amalgamento e contraposição de diversos poderes (e contrapoderes) articulados no seio da sociedade (CHAUÍ, 1986), a infância constitui-se enquanto categoria pró- pria, fundada para a preservação da mão de obra necessária ao processo produtivo. Porém, mesmo as normatizações jurídicas e 9 A cidadanização implica em individualização, racionalização – na forma pela qual os sujeitos sociais se relacionam com o mundo –, responsabilização – do sujeito em detrimento da responsabilidade estatal –, disciplinarização e macro institucionalização – na qual os sujeitos, cada qual com sua função, compõem o bloco maior que é a sociedade (CORREIA, 2010, ibidem). 10 O termo, por si só, já indica o lugar que essas crianças ocupam no mundo: adjetivo transformado em substantivo, compõe uma insígnia de inferioridade que é transferida na nomeação instituída.

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