Revista da EMERJ - V. 24 - N. 1 - Janeiro/Abril - 2022

182  R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 166-189, Jan.-Abr. 2022  Tal ilustração mostra que, apesar de a personagem ter sido uma cidadã exemplar, cumpridora de todas as suas obrigações, pagadora de infinitos impostos, ela não pôde contar com o Estado brasileiro em seu momento derradeiro. Diante de tal relato, não há como não pensar que fosse deveras preferível optar pela pri- são injusta por um ato de amor (mas ainda assim por um tempo determinado) a uma condenação eterna por um ato de covardia. Tal ilustração leva também a pensar que, assim como nin- guém, na qualidade de indivíduo divorciado de eventual relação direta e objetiva com a sociedade política, pode ser maniqueis- tamente condenado a morrer, em função do proclamado direito à vida, igualmente não pode ser condenado, na qualidade de ti- tular e destinatário exclusivo desse mesmo direito, a viver uma existência a que efetivamente não deseje (v.g. por subjetivamente interpretá-la indigna), sob o risco de passar a titularizar um di- reito sobre o qual efetivamente não dispõe. Nunca é demais lembrar que, na mitologia, apenas os vampiros – qualificados como entidades inferiores e “seres da sombra” – são condenados, a sua revelia, a uma vida eterna sem sentido, que os impede (através de uma modalidade particular e absoluta de condenação perpétua) de evoluir espiritualmente. Nesse sentido, cumpre observar que a própria mitologia defen- de, em certo aspecto, o direito individual à morte como forma úl- tima de sublimação da vida e de seu correspondente e umbilical direito à existência espiritual. Nesse contexto, não há qualquer sentido em afirmar uma pretensa indisponibilidade absoluta do direito à vida, não so- mente porque tal conclusão excluiria o próprio conceito binário ou dicotômico de titularidade e destinatário inerente ao direito em questão, como ainda pelo simples fato de que é reconheci- damente lícito, em praticamente todas as legislações ocidentais (e, especialmente, na brasileira), dispor da própria vida, consi- derando que o ato de suicídio per si (e não a instigação, o indu- zimento e o auxílio por terceira pessoa) não constitui crime, por não se caracterizar em conduta tipificada pela lei penal.

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