Revista da EMERJ - V. 24 - N. 1 - Janeiro/Abril - 2022
170 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 166-189, Jan.-Abr. 2022 fosse intrínseca a ela. Na sociedade atual, a vida, em consonância com as ideias de Castro (2009) já não se organiza sobre bases éti- cas, mas estéticas. Priorizam-se a gratificação imediata, o presente e as aparências, e isso também afasta a ideia da morte. No Brasil, o avanço do debate político-jurídico acerca de temáticas consideradas tabus, bem como a efetivação de direitos nesse âmbito, é muito lento. E o tema “direito à morte digna”, como muito outros, esbarra na questão da sacralidade (compo- nente formador do tabu), que sob o manto da religiosidade ques- tiona o livre-arbítrio. Não há como deixar de reconhecer que a sociedade bra- sileira nunca deixou de se caracterizar, pelo menos em alguma medida, como uma metrópole de nítidas feições medievais, por viver permanentemente atrelada a um autêntico fundamenta- lismo religioso, particularmente de índole cristã, tão rigoroso e extremado (ainda que mais dissimulado em relação aos clássicos radicalismos religiosos, de feição muçulmana xiita ou de qual- quer outra natureza) que simplesmente vem, reconhecida e siste- maticamente, impedindo qualquer tipo de avanço social percep- tível sobre temas importantes e de fácil “negociação” em outras localidades mais desenvolvidas. Há, na verdade, uma grande dificuldade sobre qualquer debate sóbrio e desapaixonado sobre assuntos que, em países democráticos (democracias reconhecidamente qualificadas como de “conteúdo” 4 ), traduzem, sobremaneira, a genuína e almejada 4 O filósofo italiano Paolo Flores D’Arcais ( El país , 2000), ainda que sem citar a expressão “democracia de con- teúdo” , já alertava sobre a efetiva importância dos valores democráticos, assinalando que “na verdadeira democracia, o consenso eleitoral, o princípio da maioria, é importante, mas não fundamental [...]”. Em seguida, conclui que o fundamento do verdadeiro regime democrático se encontra “no sublime respeito aos direitos civis”. Carlos Pagni (em “O poder absoluto das maiorias”, O Globo , 2015), em adição, adverte que o poder das maiorias não é absoluto em uma democracia , para, em ato contínuo, em tom de questionamento reflexivo, registrar a ideia segundo a qual não é o povo que é soberano, mas os valores nos quais a democracia se encontra fundamentada . Ainda que a atual Constituição Brasileira, de 1988, em sua redação textual aluda à soberania (art. 1º, I) como fundamento do Estado brasileiro, continua a viger em nosso país a equivocada “soberania popular” que, sob certo ângulo analítico, permite a conclusão hermenêutica de que os valores democráticos – notada- mente a “dignidade da pessoa humana” (art. 1º, III) – podem de alguma forma ser desrespeitados (como de fato o são) por uma pretensa vontade da maioria, expressa ou não por representantes legislativos. Essa simples possibilidade – independentemente de se constituir em uma efetiva realidade –, por si só, já denota o quão frágil é a democracia brasileira (qualificada como de simples continente formalizante),
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