Revista da EMERJ - V. 23 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2021

 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, p. 62-94, Set.-Dez. 2021  72 Respeitosamente, a premissa elencada coloca em xeque a permanência de uma aplicação axiomática da Súmula 54 do STJ para demarcar o termo inicial da fluência dos juros moratórios em caso de indenização por prejuízo extrapatrimonial. A essên- cia que estruturou os diversos Recursos Especiais que ilustraram o enunciado permite uma releitura, ou melhor, uma pontual dis- tinção pragmática quanto ao termo inicial dos juros na indeniza- ção por dano extrapatrimonial. 1.1 A propedêutica situacional que implica os fundamentos da Súmula 54 do STJ Duas frentes dogmáticas são peremptórias para a sucessão dos precedentes que embasam a Súmula 54 do STJ: a separação dos poderes do Estado, com a prevalência do Legislativo sobre o Judiciário 6 e a decorrente tarefa descritiva do Judiciário perante os textos legislativos 7 . Os argumentos ventilados nas decisões assinalam uma ver- dadeira sistematização do direito privado, que parte do texto do Código Civil (na época, uma obra monumental e global do sis- tema do direito privado). Vale dizer que os julgados não confe- 6 Antes da Revolução Francesa, o Judiciário era formado por membros da alta classe que podiam ceder ou vender os próprios cargos. A corrupção e a desconfiança em relação ao órgão judicante cresciam. Re- alidade que levou Montesquieu a desenvolver um modelo de Estado que pregava a separação absoluta entre os poderes. Mais que a separação dos poderes, devido àquela desconfiança, o esquema reservou uma tarefa meramente cognitiva dos textos da legislação ao juiz . O juiz não criava o direito, apenas reproduzia a vontade do legislativo, a lei do caso concreto – ditames que foram assimilados pelos processualistas da cepa de Chiovenda, Carnelutti e Calamandrei e que vieram a influenciar o manuseio do processo em di- reito brasileiro. Nesse formato, o Judiciário foi subordinado ao poder Legislativo , tendo em vista que para que a separação dos poderes funcionasse, “o legislativo deveria editar leis capazes de regular todas as situações. Ganhou força, assim, a figura dos Códigos, monumentos legais editados com a promessa de completude e coerência. Com eles, os juízes poderiam e eram incentivados a se portar como a simples boca da lei”. PUGLIESE, William. Precedentes e a Civil Law brasileira (interpretação e aplicação do novo Código de Processo Civil). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 28. Falar em Estado liberal clássico é reativar a separação absoluta dos poderes nesse período que sucede a Revolução Francesa, sobretudo assinalando a supremacia do Legislativo por sobre o Poder Judiciário – o que somente foi modificado com o movimento constitucionalista de meados do século XX (pós-guerra). 7 A separação de poderes chega a ser uma “noção de cobertura” paradigmática que se reflete no modelo racionalista da operação jurídica – a própria separação dos poderes se modifica ao largo do tempo (pas- sou a ser uma separação harmônica de funções estatais com o escopo da tutela dos direitos das pessoas). “A univocidade de sentido, que o jusracionalismo procura conferir à norma legal, retira do julgador a possibi- lidade de interpretar, usurpando, assim, o seu poder criativo. Suprime-se inclusive sua autonomia crítica, e o julgador não age valorativamente, mas apenas descobre a vontade unívoca do legislador”. MARIN, Jeferson Dytz; LUNELLI, Carlos Alberto. O direito como ciência do espírito: a necessidade de mudança paradigmática do processo. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), julho-dezembro 2012, p. 171.

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