Revista da EMERJ - V. 23 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2021

 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, p. 62-94, Set.-Dez. 2021  66 persuasões ou dissonâncias que emprestam consistência ao di- reito oriundo do seio judiciário 2 . A Súmula 54 do Superior Tribunal de Justiça está para com- pletar trinta anos desde a publicação 3 . No cotejo ao antigo ou ao atual Código Civil, ela parece singela e perene ao enunciar que “os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual”. Porém, nessa literalidade, é possível antever a importância de uma diatribe conceitual – o dano a ser indenizado em responsabilidade contratual ou os danos a se- rem indenizados em responsabilidade extracontratual (aquiliana) foram examinados enquanto elementos centrais das decisões. 2 “O fenômeno nada teria, em si, de surpreendente. O Direito, realidade cultural, coloca-se, tal como a língua, numa área de estabilidade marcada. As verdadeiras mudanças são lentas; a sua detecção depende de uma certa distanciação histórica”. CORDEIRO, António Menezes. Introdução à edição portuguesa de “Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito” de CANARIS, Claus-Wilhelm. Trad. de António Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, p. IX. 3 Importante assentar que a Súmula 54 do Superior Tribunal de Justiça provém de um ambiente cultural em que a Corte de vértice fazia jurisprudência e que o conjunto de decisões similares eram abarcados por súmulas persuasivas – assim se mantinha em evidência a supremacia do texto da lei no Estado Legislativo. Existe uma discussão sobre a vinculatividade de súmulas ou precedentes na transição do Estado Legisla- tivo para o Estado Constitucional. O presente ensaio parte do pressuposto dogmático de que os art. 489, §1ª, V e VI, 926 e 927, do CPC, são normas gerais transetoriais que devem guiar a interpretação e aplicação do direito no Brasil em todas as esferas jurídicas. Assim que a jurisdição se reforça juspoliticamente nessa transição da jurisprudência para o precedente , o Estado Constitucional atualmente considera a decisão do STJ um precedente vinculativo no sentido forte. A questão assumiu foros institucionais para respaldar a consistência do direito por intermédio do discurso argumentativo das Cortes Supremas – o STF e o STJ. A pesquisa trabalha com a noção de precedente, ou seja, trata-se de um julgamento qualitativamente di- ferenciado, que fundamenta a decisão do caso, mas também confere sentido e unidade ao direito (esses dizeres chegam a estarem escritos na “missão do STJ”, no pórtico de entrada dos prédios, em Brasília). MARANHÃO, Clayton. Jurisprudência, precedente e súmula no direito brasileiro. In ARENHART, Sergio; MITIDIERO, Daniel (coord.); DOTTI, Rogéria (org.). O processo civil entre a técnica processual e a tutela dos direitos (estudos em homenagem a Luiz Guilherme Marinoni). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 1269. No mesmo sentido, MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas (do controle à interpre- tação, da jurisprudência ao precedente). 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, passim . Ainda que se alegue que a Súmula 54 do STJ é um rescaldo de um apanhado de jurisprudências sem valor vinculante forte , é necessário considerar o seguinte: a partir dessa súmula, o STJ firmou diversos precedentes (conforme o Estado Constitucional), que praticamente repetem a ratio decidendi já avistada nos acórdãos que aparelha- ram a súmula. Logo há uma solução de continuidade no adensamento jurídico da tese para a qual ora se postula um estreitamento ( narrowing ). Marinoni comenta precisamente que a súmula é um enunciado abstrato que não se qualifica como precedente. “O problema é que um enunciado acerca de decisões judiciais não tem as mesmas garantias de um precedente. Para que exista precedente não basta apenas um enunciado acerca da questão jurídica, mas é imprescindível que esse enunciado tenha sido elaborado em respeito à adequa- da participação em contraditório dos litigantes e, assim, tenha surgido como um resultado do processo judicial”. Mais adiante, o autor assinala que “a legitimidade da coisa julgada não pode ser confundida com a legitimidade do stare decisis ou do precedente com força obrigatória”. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios . 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 155. Ocorre que no caleidoscópio massificado da jurisdição brasileira , precedentes como o REsp 710.879 e REsp 1.152.548 sobrevieram à Súmula 54 – pautando uma holding idêntica à outrora antevista. Fenômeno que ratifica a utilização das bases quiçá jurisprudenciais, atualmente firmadas em precedentes, para acusar a necessidade da distinção restritiva da Súmula-precedentes no caso da indexação do montante concretizado a título de indenização por dano extrapatrimonial. Afinal, o direito brasileiro nasce do galho em planta, é a terra do tertium genus .

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