Revista da EMERJ - V. 23 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2021
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, p. 110-145, Set.-Dez. 2021 131 Registre-se, todavia, que o Legislativo poderia ter rediscu- tido e autorizado a realocação de parte do fundo eleitoral-par- tidário diante do atual caos sanitário. Evidente que tais fundos financiam a democracia representativa, porém faltou bom senso à maioria dos parlamentares, movidos por interesses eleitorais. Seria possível, sim, a realização de eleições municipais de 2020, mesmo com a destinação parcial de recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha para o combate ao coronavírus. O Parlamento, ao não remanejar qualquer valor do fundo para a preservação da saúde e vida, cometeu um grande equívoco na decisão política de escolha das prioridades orçamentárias. 21 A questão é menos controversa quando a realocação de verbas ocorre na mesma categoria orçamentária, desde que de- monstrada a omissão específica do Poder Público. No leading case Grootboom, por exemplo, a Corte Constitucional sul-africana não realocou verbas de um programa orçamentário para outro, mas apenas determinou a utilização da própria dotação orçamentária destinada à moradia para atendimento de uma situação desespe- radamente necessária ao grupo vulnerável que buscava a tutela jurisdicional. 22 uploads/2020/03/fundo-eleitoral.pdf. Acesso em 15 jun. 2020. 21 O Partido Novo, em Consulta ao TSE (processo nº 0601012-64.2018.6.00.0000), questionou se os partidos políticos poderiam devolver a integralidade dos recursos recebidos do Fundo Partidário diretamente ao Tesouro Nacional. O rel. min. Luís Felipe Salomão não conheceu do pedido cautelar e determinou o exame da Consulta pelo Plenário com urgência. No acórdão, o relator entendeu que “o partido almeja, nos autos de procedimento de cunho administrativo que somente pode envolver situações hipotéticas, obter decisão judicial versando sobre caso concreto, tendo como fundamento incerta e futura resposta positiva a questio- namento formulado em tese na própria Consulta, o que não se admite”. Acórdão disponível em: https:// www.conjur.com.br/dl/tse-destinar-fundo-partidario-covid-19.pdf. Acesso em 16 jun. 2020. 22 No caso, a Sra. Grootboom e outros autores moravam em acampamentos informais em uma região sujeita a alagamentos. Muitos deles se candidatavam a programas de habitação popular, mas aguardavam na lista havia muito tempo e sem previsão de disponibilidade de residências. Com a proximidade da estação das chuvas, mudaram-se para um terreno particular, mas foram retirados judicialmente. Na tentativa de retorno ao antigo acampamento, outras pessoas já ocupavam o lugar. Então os prejudicados ingressaram com uma ação perante a High Court , que entendeu não haver violação ao artigo 26 da Constituição, mas sim ao artigo 28, que confere às crianças o direito de abrigo. Assim, a High Court determinou o imediato atendimento do governo às famílias com crianças e fixou condições mínimas sanitárias. O governo, então, recorreu à Corte Constitucional alegando a reserva do possível, baseado no caso Sobramoney . ACorte defi- niu que um programa social para a moradia deveria ser abrangente e que uma política que exclui parcela relevante da sociedade não poderia ser considerada válida. A política, assim, falhou ao não priorizar as pessoas em imediata e desesperada necessidade, devendo ser modificada para atender a esse público miserável, mesmo em prejuízo de objetivos de longo prazo e de construções de residências permanentes. A Corte não menosprezou a reserva do possível, mas determinou que parcela razoável do orçamento da moradia fosse direcionada àquela situação emergencial; todavia deixou a implementação específica ao encargo das autoridades administrativas competentes (MAURÍCIO JR., 2009, p. 253-258).
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