Revista da EMERJ - V. 23 - N. 2 - Abril/Junho - 2021
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 9-30, Abr.-Jun. 2021 24 existido na Antiguidade, bastando-nos recordar aquilo que Sê- neca escreveu para seu discípulo, já então imperador: “qualquer um pode matar em desacordo com a lei, mas salvar uma vida em desacordo com a lei é sua exclusiva prerrogativa” 35 . ARevolução Francesa, naturalmente, cassou tal poder ao rei, mas foi ele exer- cido por algumas assembleias e depois outorgado ao Primeiro Cônsul; só em 1843 a competência se bipartiu, ficando a anistia para o Legislativo e a graça para o Executivo 36 . Montesquieu enalteceu as propriedades políticas da cle- mência 37 . Também Kant o fez, frisando ser ela “de todos os di- reitos do soberano aquele que dá mais brilho a sua grandeza”. Contudo, para o filósofo, nos “crimes dos súditos uns contra os outros”, a graça configuraria uma injustiça, e assim o direito do soberano estaria limitado aos delitos contra ele próprio, ou seja, ao amplo terreno do lesa-majestade 38 . Por dois ângulos é compre- ensível a posição de Kant. De um lado, para ele “a lei penal é um imperativo categórico” 39 , ou seja, prescreve uma ação necessária por si mesma e autofundamentada, sem qualquer outra finalida- de ou propósito; basta recordar o exemplo insensato da obriga- ção de executar o último condenado mesmo após a dissolução da sociedade civil. Bom olfato teve Nietzsche ao registrar que “o imperativo categórico cheira a crueldade” 40 . Por outro lado, perdurou até o século XVIII a prática de, em (in)certos casos e sob (in)certas condições, a solicitação de graça ao rei ser instruída com o perdão da vítima ou de seus parentes. Num estudo preci- samente sobre o tema, Tomás y Valiente informava que “um dos requisitos normalmente considerados para a concessão do indul- to real era a existência de perdão da parte (ou mais exatamente a inexistência de querela), motivo pelo qual era sempre útil ao solicitante do indulto a escritura do perdão” 41 . Essa prática e a 35 Tratado sobre a Clemência, p. 53 (III [1,5], 4). 36 Saraiva de Moraes, Railda, O Poder da Graça, p. 5. 37 Do Espírito das Leis, v. I, p. 119. 38 Principios Metafísicos de la Doctrina del Derecho, p. 175. 39 Op. cit., p. 167. 40 Genealogia da Moral, p. 55. 41 El perdón de la parte ofendida en el Derecho penal castellano (siglos XVI, XVII y XVIII )), em Obras Completas , v. IV, p. 2909.
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