Revista da EMERJ - V. 23 - N. 2 - Abril/Junho - 2021

23  R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 11-32, Abr.-Jun. 2021  Bom, parece que se alguém é infalível em certa doutrina (no caso, a católica apostólica romana), suas chances de acertar em outro corpo doutrinário são imensas! Encerremos com o estudo de um caso bem instrutivo, mas para desfrutar de todas as suas virtualidades pedagógicas, con- vém retroceder alguns séculos. Os estados nacionais europeus foram politicamente viabilizados através de uma acumulação de poder punitivo que, a partir do século XIII, começa a concentrar- -se na figura do rei. Tal acumulação se realizou às custas não só da vítima – cujo dano material começa a ser menos valorizado do que a infração à lei do soberano –, mas também das justi- ças senhoriais características do mundo feudal, do antigo dever- -direito da vingança, do pater (que ainda exercia poder punitivo doméstico), do asilo eclesial e de outras fontes que ora não nos interessam. No último quartel do século XVI, o jurista e magis- trado francês Jean Bodin publicou uma obra que não só fez enor- me sucesso, alcançando quarenta edições até a metade do século XVII, como se tornaria um clássico da ciência política moderna pela concepção algo inovadora de soberania: os Seis Livros da República. O que aqui nos interessa, contudo, é uma passagem marginal, onde Bodin se detém sobre como deve o soberano ma- nobrar as penas e as recompensas. Ei-la: “Porém como as penas em si são odiosas e as recompensas favoráveis, os Príncipes bem esclarecidos se acostumaram a remeter as penas aos magistrados e reservar para si as recom- pensas para adquirir o amor dos súditos e esquivar-se a sua malevolência; e esta é a causa pela qual os jurisconsultos e magistrados trataram amplamente das penas e bem pouco tocaram as recompensas” 33 . Ficamos com a pior parte, é claro, mas uma divisão polí- tica de funções estava selada. As formas de um direito da graça ( Gnaderecht ) em mãos do soberano estavam concluídas nas mo- narquias absolutistas 34 . Não significa isso que a graça não tenha 33 Bodin, Jean, Les Six Livres de la République, v. V, pp. 97-98. 34 Zagrebelsky, Gustavo, Amnistia, Indulto e Grazia, p. 27.

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