Revista da EMERJ - V. 23 - N. 2 - Abril/Junho - 2021

 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 9-30, Abr.-Jun. 2021  22 resultava de uma multisecular acumulação primitiva de poder punitivo – deveria restituir ao cidadão o direito de acusar tanto quanto coibir seu abuso 31 . A recente lei que criminalizou o abuso de autoridade (lei nº 13.869, de 5.set.19) foi objeto de inúmeras censuras, nenhuma das quais endereçada à disposição que ex- propriou a vítima de seu conflito e entregou a decisão de proces- sar ou não ao Ministério Público (art. 3º), ou seja, a um provável conhecido, ou amigo, ou colega, ou conhecido do amigo ou do colega do autor do abuso. Será isso republicano? O juiz criminal escolhe entre ser um facilitador do poder punitivo ou ser, precisamente ao contrário, o diligente examina- dor da legalidade, constitucionalidade e racionalidade do poder punitivo que só ele, após o devido processo, pode habilitar. Cabe- -lhe evitar o que Garapon chamou de “tentação populista” 32 , que costuma acometer aqueles sensíveis às seduções da boa imagem na mídia. Cabe-lhe precaver-se contra os “terraplanistas” do di- reito penal e contra a enfieira de tolices que constitui o evangelho deles. Cabe-lhe não se conformar com a naturalização das violên- cias do sistema penal, cujas agências policiais mataram no Rio de Janeiro, em 2019, cerca de 1800 pessoas – média de 150 por mês, de 5 por dia. Que tribunal no mundo alcançaria “efetividade” similar?! E ainda há “terraplanistas” que acreditam firmemente que a pena de morte resolveria tudo. O ano passado (2019) não foi apenas de retrocessos e per- plexidades. Em 15 de novembro, o Papa Francisco recebeu par- ticipantes do XX Congresso da Associação Internacional de Di- reito Penal. De sua bela alocução, transcrevamos uma passagem: “Concretamente, o desafio atual para todo penalista é conter a irracionalidade punitiva que se manifesta, entre outros in- convenientes, no encarceramento em massa, superlotação e tortura nas prisões, arbítrio e abusos das forças de segurança, expansão do âmbito da pena, criminalização dos protestos sociais, abuso da prisão preventiva e repúdio às mais elemen- tares garantias penais e processuais”. 31 Ciencia de la Legislación, v. I, p. 607. 32 O Juiz e a Democracia, p. 65.

RkJQdWJsaXNoZXIy NTgyODMz