Revista da EMERJ - V. 23 - N. 2 - Abril/Junho - 2021

19  R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 11-32, Abr.-Jun. 2021  tes da irmã” 26 . Quando isso acontecer, estarão ruindo fragoro- samente muitos daqueles mitos processuais-penais dos quais se ocupou Rubens Casara 27 . Superar os dois obstáculos epistemológicos tratados, essas duas ilusões teóricas que espocam no ar como bolhas de sabão, significa reconhecer não apenas que o processo penal dispõe de peculiaridades impeditivas de sua completa assimilação ao ci- vil e que não existe direito penal subjetivo, e sim poder puni- tivo, mas também que os procedimentos criminais constituem o canal burocrático para o exercício do poder punitivo. Aqui se abre outra linha de investigação. Toda a formação penalística concebe a criminalização secundária, ou seja, a concreta atribui- ção de um delito a alguém, de uma perspectiva individualizan- te: trata-se de um determinado sujeito, imputável e culpável, ao qual se aplicará uma pena individualizada (em caso de concur- so de agentes, caberá a mesma individualização para cada um deles). Se por um lado isso responde a exigências do princípio da culpabilidade, por outro tende a isolar o conflito de seu con- texto histórico até reduzi-lo a um problema ético, com o auxílio do conceito de “reprovabilidade” que Frank há mais de sécu- lo incrustou na culpabilidade 28 e que fomenta muitas vezes um moralismo vulgar: perante a autonomia moral da pessoa, o juiz pode (aferidas tipicidade, ilicitude e culpabilidade em sua con- duta) condenar o réu, jamais repreendê-lo ou – pior – insultá-lo. A formação penalística, portanto, adestra-nos para olhar o caso isoladamente, como um biólogo atento à matéria na lâmina de seu microscópio. Quando o biólogo perceber em muitos exames a repetição de dados que sugiram uma epidemia, notificará as autoridades sanitárias, que se interessarão pela origem da epi- demia e pelas medidas para revertê-la. Quando o juiz criminal decide o centésimo caso semelhante – pela extração social dos réus, pelas circunstâncias da prisão, pelas provas etc. – ele tem todo o direito de desconfiar que sua jurisdição está sendo em- 26 Direito Processual Penal, v. I, pp. 33 ss. 27 Mitologia Processual Penal, pp. 139 ss. 28 Frank, Reinhard, Sobre la Estructura del Concepto de Culpabilidad .

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