Revista da EMERJ - V. 23 - N. 2 - Abril/Junho - 2021
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 9-30, Abr.-Jun. 2021 18 violação da presunção de inocência e do direito a um julgamen- to justo. Tal licenciosidade expõe à maledicência pública magis- trados comprometidos com as garantias processuais ao mesmo tempo em que enaltece os pistoleiros togados. Tal licenciosida- de é terminantemente proibida nos Estados Unidos. Fiquemos num só exemplo. Nos anos cinquenta, o médico Sam Sheppard foi acusado de espancar e matar sua esposa. O caso despertou interesse da imprensa. Um jornal estampou a seguinte manchete: “ por que Sam Sheppard não está na cadeia ?”, tendo ele sido preso no mesmo dia. Julgado e condenado, dirigiu-se à Corte Suprema, que anulou a condenação pela interferência da mídia, afetando o direito a um julgamento justo. Quem quiser conferir, é She- ppard vs Maxwell 384 US.333. Há diversos outros precedentes similares. Curiosamente os partidários da importação incondi- cional de produtos jurídicos estadunidenses – como a “cegueira deliberada”, a prima casca-grossa do dolo eventual – neste único ponto preferem a prática brasileira. O processo penal tem um tempo de amadurecimento, de consolidação da prova, da procu- ra exaustiva de um contra-indício que talvez reverta o sentido de um documento ou de uma gravação, da dissolução do escândalo sensacionalista que possa ter ocorrido em sua origem. Tribunais nazistas não pensavam assim, e há entre nós muita gente que continua não pensando assim. A reação à pretensão da teoria geral do processo de equa- lizar o penal ao civil já foi desencadeada por diversos repre- sentantes da nova geração brasileira de processualistas-penais críticos. Todos nos lembramos do espirituoso artigo no qual Car- nelutti comparava a ciência do processo penal à Cinderela, vi- vendo entre duas irmãs “belas e prósperas” (a ciência do direito penal e a ciência do processo civil) sua “infância e adolescência infelizes” 25 . Pois nosso Aury Lopes Jr. já fez a pergunta decisiva: “quando Cinderela terá suas próprias roupas”? Afinal, prosse- gue, “o processo penal possui suas categorias jurídicas próprias, sua diversidade inerente, e não mais se contenta em usar as ves- 25 Cuestiones ..., cit., pp. 15 ss.
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