Revista da EMERJ - V. 23 - N. 2 - Abril/Junho - 2021
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 9-30, Abr.-Jun. 2021 16 habilitante de poder punitivo; sem dúvida nenhuma, um ato de poder que o Estado de direito trata de regular meticulosamen- te, mas que os regimes autoritários e as forças antidemocráticas que tentam alavancar o Estado de polícia gostam de exercer sem limites e sem controle. O chorrilho de asneiras destiladas no últi- mo ano a propósito da legítima defesa presumida que se preten- deu reinventar revela bem a pulsão pelo livre exercício do poder punitivo – naturalmente, nas vestes mais limpas de um direito subjetivo do Estado. Aproximar a pena das demais sanções jurídicas tem como efeito ideológico disfarçar a brutalidade das execuções penais. No esqueminha do direito subjetivo, o condenado seria ape- nas um devedor apanhado pelo credor, levado à cadeia e nela mantido até pagar a dívida, como naquela lei baixo-medieval portuguesa segundo a qual o devedor que “non pagar avendo per hu (...) seia preso e non seia sollto taa que pague saluo se o Senhor da diuida quiser” 19 . Basta colocar o Estado na posição de credor e aí está o modelito teórico do direito penal subjetivo; se o devedor pagar tudo (em dinheiro, se o débito tiver natu- reza tributária, ou em tempo nos demais casos), o “Senhor da dívida” o deixará ir em paz. Aproximar o processo penal do civil pode ter efeitos nefas- tos. Não ingressaremos na duvidosa categorização da lide proces- sual penal. Essa questão está levantada pelo menos desde 1928, desde a polêmica entre Calamandrei e Carnelutti, mencionada entre nós por Galeno Lacerda 20 . Para Calamandrei, não havia lide no processo penal; Carnelutti, duas décadas mais tarde, ten- taria situar a lide entre “o acusado e a parte lesada” 21 ; Frederico Marques entreviu-a entre o fictício direito penal subjetivo estatal e o direito à liberdade do acusado 22 . Nosso Jacinto Coutinho já dissecou magistralmente o tema em 1989 23 . Por si só, tal questão 19 Albuquerque, Martim de – Borges Nuno, Eduardo (orgs.), Ordenações del-Rei Dom Duarte, p. 206. A lei é de D. Diniz. 20 Teoria Geral do Processo, p. 65. 21 Cuestiones sobre el Proceso Penal, p. 47. 22 Elementos..., cit., pp. 11-12. 23 A Lide e o Conteúdo do Processo Penal.
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