Revista da EMERJ - V. 23 - N. 1 - Janeiro/Março - 2021

 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 68-80, Jan.-Mar. 2021  78 Com isso, na prática, são elas que, prima facie , assumem a função de dirimir os conflitos de interesses públicos e privados que tra- dicionalmente é reservada ao poder judicial do Estado, acaban- do por ser elas a regular o exercício da liberdade de expressão. Nesse contexto, chamam a si poderes de autoridade como os de suprimir conteúdos ou banir utilizadores do seu espaço público online , o que pode ter o significado de restrição de liberdades fundamentais. O relevo desse papel é de tal ordem que o Face- book criou uma espécie de tribunal interno para apreciar e deci- dir reclamações relacionadas com a eliminação de conteúdos 15 . Embora assumindo um papel de aliadas dos Estados no combate ao discurso de ódio, essas grandes empresas tecnoló- gicas não deixam ao mesmo tempo de ser alvos potenciais de sancionamento estadual no caso de não reagirem prontamente a publicações dessa natureza. O que gera esta dúvida: actuarão essas empresas para proteger os valores que são ameaçados pelo discurso do ódio ou para se protegerem a elas mesmas, designa- damente, de eventuais sanções ou dos danos reputacionais pe- rante a sua matéria prima (os utilizadores, que alimentam o seu comércio de dados 16 )? Essa privatização do enforcement penal do discurso do ódio e da regulação da liberdade de expressão gera preocupação não só por significar uma privatização de funções essenciais do Esta- do, mas também porque as empresas a quem essas missões vêm sendo entregues não se têm revelado propriamente exemplares no modo como lidam com a liberdade de expressão. Isso quando é nas suas plataformas informáticas que é expressa uma parte muito substancial das manifestações extremistas e de ódio, po- tenciadas pelo anonimato a que os utilizadores podem recorrer e pela distância entre os agentes e os visados pelas suas impre- cações. Ora, as empresas tecnológicas a que se vêm entregando funções materialmente jurisdicionais são as mesmas que na sua actividade empregam algoritmos e ferramentas de captação da 15 C atalina B otero -M arino / J amal G reene / M ichael W. M c C onnell / H elle T horning -S chmidt , “We are a new board overseeing Facebook. Here’s what we’ll decide”, The New York Times online , 06.05.2020. 16 S hoshana Z uboff , The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power , PublicAffairs, 2019.

RkJQdWJsaXNoZXIy NTgyODMz