Revista da EMERJ - V. 23 - N. 1 - Janeiro/Março - 2021
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 68-80, Jan.-Mar. 2021 76 res, essencialmente em função dos limites a impor à liberdade de expressão. Discussão que se centra sobretudo naqueles casos em que ao discurso de ódio não poderá ser assacado um carácter incitador de violência ou de discriminação. Não é, porém, nessa polémica que ora me pretendo de- ter. Procurarei antes lançar algumas pistas de reflexão acerca da possibilidade de compatibilização da atribuição de relevo penal ao discurso de ódio destituído de um apelo à violência ou à discriminação com alguns princípios e ideias estruturan- tes do direito penal. Pois, como é evidente, para que se tenha como legítima uma incriminação dessa natureza não basta que se conclua que a mesma não é vetada pelo direito fundamental à liberdade de expressão. a) A esse propósito, uma primeira dúvida que me assola é a da conciliação de uma acção penal nesse domínio com a ideia basilar de que a função de protecção de bens jurídicos que é cometida ao direito penal tem um cariz de ultima ratio . A essa compreensão do papel do direito penal na vida social vai associado o pensa- mento de que não lhe deve ser atribuída uma missão propulso- ra da mudança dos costumes sociais. Boa parte dos comporta- mentos censurados por apelo à figura do discurso de ódio são moeda corrente em muitos estratos sociais e não são poucas as vezes em que figuras públicas, incluindo pessoas com elevadas responsabilidades políticas, os adoptam publicamente. Ameaçar com o direito penal condutas discriminatórias que se manifes- tam através da grosseria e da boçalidade, mas que não vão além disso, envolve o risco de o transformar num mero tigre de papel, reduzido a uma função simbólica de apaziguamento dos poten- ciais visados e dos que se sentem repugnados com atitudes desse jaez. Num caso ou noutro, sobretudo quando vá envolvida algu- ma comoção social, a intervenção penal acabará por ser efectiva. Mas só numa ínfima minoria das situações é que isso acontecerá, tornando os infractores numa espécie de bodes expiatórios. A esse risco associa-se um outro: o de a intervenção penal ser percepcionada como uma forma de calar sectores da popu- lação que se sentem deixados para trás e que fazem uso de um
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