Revista da EMERJ - V. 23 - N. 1 - Janeiro/Março - 2021

149  R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 142-184, Jan.-Mar. 2021  que funcionários e clientes utilizavam o banheiro comum do próprio shopping – no qual ela fora impedida de entrar. Diante disso, os termos do ponto 1.13 da petição inicial evidenciam o que Ama retratou no boletim de ocorrência sobre suas necessi- dades fisiológicas 5 . O relato transcrito do boletim de ocorrência redigido pela escrevente, por si só, já explicita problemáticas que não se pode deixar de mencionar e as quais se repetem e se agravam na con- testação e nas demais peças processuais subsequentes – tanto por parte do réu, como da autora, e também dos juízes e desembar- gadores 6 . Contudo, essas questões devem ser reservadas para adiante, quando aprofundada a discussão acerca das disposições de gênero social e sexo biológico e quando esgotados a apresen- tação do caso, seu rumo até a Suprema Corte e os fundamentos jurídicos nos quais ele se baseia. Na contestação, por sua vez, o estabelecimento réu defen- deu-se. Arguiu, na quarta página da peça, que o ocorrido “pode até ter causado aborrecimento e/ou desconforto” na autora, mas não em razão do alegado constrangimento sofrido, e sim pelo simples fato de ela ter tido “a sua vontade contrariada”, o que, para a defesa, faria “parte do cotidiano de qualquer ser humano normal”. Nesse raciocínio, o réu aproveitou para reafirmar que seus funcionários não agiram de forma ofensiva ou preconcei- tuosa com a autora, e que o simples fato de ela ter suas genitá- lias masculinas seria motivo suficiente para constranger outras mulheres no banheiro. Assim, o shopping tentou desqualificar o dano alegado, argumentando que ele não pode se configurar como “desestruturação psicológica” da autora. 5 “A autora não conseguiu controlar suas necessidades fisiológicas, acabando por defecar em suas vestes ali mesmo no corredor (...). Neste instante começou a chorar compulsivamente, sob o olhar de todas as pessoas que ali estavam”. (STJ, 2013, fl.6) 6 Exemplos dessas problemáticas são: a alternância entre os artigos “a”, do feminino, e “o”, do masculino, quando da tentativa de se referir à autora; a referência a ela pelo nome masculino e não pelo feminino; a explicitação de que ela não seria uma mulher por “ter a genitália biologicamente desguiada aos homens” e, por fim, a frase proferida por Ama “Como posso ir a um banheiro masculino se tenho corpo de mulher?”.

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