Revista da EMERJ - V. 22 - N.3 - Setembro/Dezembro - 2020
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 22, n. 3, p. 69-99, Setembro-Dezembro. 2020 77 4. A LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR NA ERA DO DIREITO PENAL CONSTITUCIONAL Diante do vigente sistema constitucional, o legislador não tem em mãos um “cheque em branco” em matéria penal. Em outras palavras: o Estado Democrático de Direito não con- fere liberdade absoluta ao Poder Legislativo para criminalizar ou descriminalizar condutas e temas ao sabor de interesses políticos ou econômicos, – reconheça-se – nem sempre repu- blicanos ou publicáveis nos tempos atuais. Portanto, o legis- lador está sujeito a balizas constitucionais ora expressas, ora implícitas, o que se traduz em limitações não apenas de ín- dole formal (quanto ao processo de criação normativa), mas também de caráter material (no que diz respeito ao conteúdo normativo propriamente dito). A doutrina penalista mais conservadora costuma enxer- gar apenas a função restritiva das normas constitucionais sobre a atividade do legislador penal, ou seja, vislumbram-se tão so- mente os focos de proibição de criminalização. Nesse prisma, são tidas como proscritas, por exemplo, a criação de tipos pe- nais que confrontem liberdades textualmente garantidas 19 , bem como medidas que estabeleçam discriminação arbitrária ou fi- xem um padrão obrigatório de comportamento moral 20 , sexual, filosófico, político ou religioso. Até aqui, inexiste novidade re- levante a comentar. Porém, noutro giro, discute-se se a Constituição de 1988 impõe ao legislador deveres de incriminação em alguns temas 19 A título de exemplo histórico a ser rechaçado, cabe menção ao artigo 402 do Código Penal de 1890 (De- creto n. 847), que criminalizou a prática pública da capoeira no Brasil, o que se deu apenas dois anos após a abolição da escravidão com a edição da Lei Áurea, em 1888. Confira-se o trecho do aludido dispositivo: “Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação de capoei- ragem (...). Pena – de prisão celular por dous a seis mezes.” Cf. PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil : evolução histórica. 2. ed. São Paulo: RT, 2001, p. 320. 20 Um exemplo esdrúxulo de incriminação de comportamento apenas moralmente reprochado se deu ainda na fase imperial da história do Brasil, quando o Livro V, Título LXXXV, das Ordenações Filipinas criminalizou a prática da fofoca ao tratar “dos mexeriqueiros” em dispositivo que continha a seguinte re- dação: “Por se evitarem os inconvenientes, que dos mexericos nascem, mandamos, que se alguma pessoa disser á outra, que outrem disse mal delle, haja a mesma pena, assi civil, como crime, que mereceria, se elle mesmo lhe dissesse aquellas palavras, que diz, que o outro terceiro delle disse, posto que queira provar que o outro o disse.” PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil : evolução histórica. 2. ed. São Paulo: RT, 2001, p. 152.
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