Revista da EMERJ - V. 22 - N.2 - Maio/Agosto - 2020

 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 22, n. 2, p. 221 - 248, Maio-Agosto. 2020  243 Ademais, conforme já referido em momentos anteriores deste tra- balho, tal situação a que se submete o acusado perante o conselho de sentença viola sistematicamente os preceitos legais contidos em tratados internacionais de direitos humanos incorporados ao orde- namento jurídico pátrio, bem como documentos correlatos. Verifica-se que semelhante afronta a direitos inerentes à dignidade humana é cediça no ordenamento pátrio, em virtu- de da herança trazida ainda por ocasião das Ordenações Filipi- nas, que traziam severas disposições acerca do procedimento de apuração criminal e normas penais incriminadoras, enquanto reminiscência do antigo regime das ordálias, comuns no período medievo, mas que permaneceram adaptadas à realidade brasi- leira durante todo o período colonial até a publicação do Código Criminal do Império 13 . O tratamento dispensado aos acusados no processo penal brasileiro, fruto de uma matriz cultural latina, colonial, escravocra- ta e autoritária, difere do desenvolvimento histórico observado nas para que seja definido como delitivo, desviado ou como algo normal acerca do qual não é preciso fazer nada. O delito, nessa perspectiva, já não pode ser visto simplesmente como um fato com determinadas características próprias que o definem e o distinguem dos fatos ilícitos: a reação provocada inclusive por fatos praticamente iguais é essencial para sua qualificação como delito ou não ” (MAÍLLO e PRADO, pp. 319-320). 13 Ainda no ano de 1870, Candido Mendes de Almeida, em apresentação à edição brasileira das Ordena- ções Filipinas, já consideradas documento jurídico histórico no Direito brasileiro, apontava suas graves violações ao direito natural , antecessor dos atuais direitos humanos, frente à ordem constitucional inau- gurada pela Carta Imperial de 1824, e ainda tecia importante crítica ao Código Criminal de 1830, nos seguintes termos, in verbis : “ O nosso Legislador constituinte fez ao Paiz no art. 179 §18 da Constituição a solemne promessa de, quanto antes, dota-lo com dous Codigos, um Criminal, e outro Civil, fundados nas solidas bases da justiça e equidade. A primeira parte desta obrigação foi logo satisfeita com a Lei de 16 de Dezembro de 1830, que decretou o Codigo Criminal vigente, o trabalho mais importante da primeira Legislatura. Não obstante, não deixa de ser deficientíssimo, e exhibe em si a prova de que foi elaborado com pressa, e sem a madureza que taes commettimentos demandão; maxime depois dos abalos por que o Paiz acabava de atravessar. Havia em verdade justificado motivo no açodamento do Legislador. Vigorava ainda o Codigo Penal do antigo regimen, a Ord. do liv. 5º, cuja penalidade, sobre modo aspera e anachronica, dava largas ensanchas ao arbitrio do Juiz; mas que ainda seria supportavel, se não fosse acompanhada do respectivo processo, inquisitorial, vexatorio, e avêsso ás doutrinas que a Constituição inaugurava ” (ALMEIDA, 1870, p. V). Sobre as ordálias, embora norteado para o direito processual civil, interessante abordagem no âmbito da teoria geral do processo é realizada pelo professor Jônatas Luiz Moreira de Paula, in verbis : “ A influência religiosa na Idade Média, associada à recepção dos costumes romanos pelos bárbaros, incre- mentou a utilização das ordálias. Contudo, havia uma conotação ideológica na sua utilização, pois a prova por meio das ordálias, essencialmente formalista, não visava a formação da consciência do juiz a respeito da verdade. Tinha por finalidade fazer a afirmação da existência de Deus diante de um povo recém-cristianizado, uma vez que a verdade aparecia com a vontade de Deus, como expressão do justo, do certo e do errado. (…) Também na Idade Média, em razão do desuso do juramento, surge a figura do combate judiciário ou duelo, institucionalizado sob o uso da força, uma vez que se evitava que os indivíduos não jurassem sobre fatos obscuros e não perjurassem sobre fatos certos. Apenas os li- tigantes se enfrentavam e a vitória no duelo representava vitória na demanda. A despeito de as Ordálias e os Juízos de Deus receberem maior atenção na Idade Média, sobretudo do Direito Germânico, o fato é que, desde o Direito Antigo, têm-se notícias de sua aplicação. É o que se pode encontrar no duelo-ordálio, procedimento comum a todos os povos da Antiguidade, presente no direito hebraico, grego e romano ” (PAULA, 2003, p. 27).

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