Revista da EMERJ - V. 22 - N.2 - Maio/Agosto - 2020
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 22, n. 2, p. 221 - 248, Maio-Agosto. 2020 238 quando afirma que “ a punição vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal ” 9 . Mesmo com a adoção da pena privativa de liberdade como substituta dos vetustos suplícios corporais, o uso de algemas – bem como, em determinados casos, a imoral permanência do uso de grilhões, como mencionado supra e conforme ainda adotado na prática de execução penal dos Estados Unidos da América no transporte de presos – ainda representa um resquício dos antigos suplícios 10 , especialmente no âmbito das prisões provisórias, nas quais a culpa sequer foi estruturada 11 . 9 Cf. excerto de obra referenciada do eminente historiador e sociólogo francês, in verbis : “ A punição vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal, provocando várias conseqüências: deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstrata; sua eficácia é atribuída à sua fatalidade não à sua intensidade visível; a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro; a mecânica exemplar da punição muda as engrenagens. Por essa razão, a justiça não mais assume publicamente a parte de violência que está ligada a seu exercício. O fato de ela matar ou ferir já não é mais a glorificação de sua força, mas um elemento intrín- seco a ela que ela é obrigada a tolerar e muito lhe custa ter que impor ” (FOUCAULT, 1999, p. 13). A existência de um Museu da Tortura em Amsterdã, nos Países Baixos, vem apenas a corroborar a institucionalização de semelhante prática ao longo de toda a Idade Média e início da Idade Moderna, somente vindo a ser grada- tivamente erradicada no aspecto formal das execuções penais a partir do século XVIII. Nada obstante, por lamentável ainda se observa a prática da tortura nas relações intramuros das instituições penitenciárias, mormente latino-americanas, que por meio da limitação de direitos fundamentais exercem suposto contro- le social informal da população carcerária. 10 Destaque-se o entendimento do professor e jurista italiano Mario Losano acerca da evolução do direito penal na Europa continental, em didático escólio doutrinário com o qual ilustra sua posição valendo-se do feixe de lictor , instrumento de tortura usado pelo império romano – curiosamente, símbolo do regime fas- cista em vigor na Itália de 1922 a 1945 EC. Segue o excerto, in verbis : “ Entre tortura e pena existe uma mistura parcial, pois tortura não tem apenas uma função probatória, mas antecipa também no todo ou em parte a punição do culpado. A alegoria da Justiça de Bruegel, o Velho, representa um mundo judiciário em que a inexistência de garantias processuais não permite distinguir quem, entre os torturados, está sofrendo uma pena e quem está fornecendo uma prova. Até o final do século XVIII, de fato, a pena é essencialmente física. Na latinidade clássica, o símbolo do poder punitivo do Estado referia-se apenas às penas corporais: o feixe de lictor era efetivamente composto de varas para as punições menores e do machado para a punição capital. Não era diferente a situação dos ilícitos que hoje chamaríamos de civis: os credores insatisfeitos podiam vingar-se no corpo do devedor inadimplente, de forma que com o termo obli- gatio (em latim, ligare é atar) designa-se originariamente tanto uma obrigação jurídica, quanto um vínculo físico ” (LOSANO, 2007, p. 116). Incrivelmente, as instituições religiosas durante séculos exerceram significativo estímulo na execução de penas cruéis e infamantes. 11 Sobre a natureza excepcional das prisões provisórias, bem como da maior excepcionalidade do uso de algemas para apresentação de presos provisórios em audiências de custódia ou instrutórias ao longo do processo-crime, v. a abalizada opinião do professor Fauzi Hassan Choukr, no excerto dos comentários que seguem, in verbis : “ Assim, há nítido contraste entre a CR [Constituição da República] e a CADH [Convenção Americana de Direitos Humanos] com a tópica do Código [de Processo Penal] quanto ao tratamento do relacio- namento liberdade-prisão, pois a legislação infraconstitucional concebe esta última como instrumento essencial do modelo persecutório, e aloca a liberdade num plano de exceção em relação àquela. Tais bases são facilmente encontra- das nas locuções empregadas pela jurisprudência e pela doutrina dominantes, que utilizam expressões como ‘concede- se’ ao se referir à liberdade, ‘benefício’ ou ‘benesse’ para o tema das contracautelas pessoais, notadamente a ‘liberdade provisória’, esta última expressão bem emblemática do tratamento do tema, aliás, pois dela se extrai que provisória não é a prisão, mas sim a liberdade. A lógica do sistema inquisitivo persiste, não apenas no plano normativo, mas também no plano cultural ” (CHOUKR, 2010, p. 452). Ao longo deste estudo científico, retornar-se-á à temática dos modelos de processo penal, com ênfase na distinção entre o modelo inquisitivo e o modelo acusatório, sustentando-se que o uso de algemas nas audiências instrutórias do rito especial do júri representa vínculo
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