Revista da EMERJ - V. 21 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2019 - Tomo 2
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3, t. 2, p. 374-393, set.-dez., 2019 386 TOMO 2 constitucional que fala em remanescente e, assim, somente poderia exercer o direito se, na data da entrada em vigor da Constituição, houvesse no território alguém que remanescesse do período da escravidão que, mediante uma fuga, tivesse ocupado o imóvel e se aquilombado. Em abono da tese, cita posicionamento de José Cretella Júnior 27 , que propugna interpretação literal e diz que a iniciativa é boa, mas utópica. Houve também uma contestação contra o critério da autoatribuição que, na visada do peticionante, converter-se-ia em uma “autossugestão” com a possibilidade de um aproveitamento indevido de pessoas que não são efetivamente os destinatários do direito de propriedade. Criar-se-ia, como consta na petição inicial, “uma reforma agrária sui generis 28 ”. Ocorre que a interpretação literal de uma norma constitucional tão complexa como essa é um equívoco, notadamente porque se persistir esse argumento, forçoso seria o reconhecimento de que o constituinte originá- rio já lhe teria roubado a eficácia, pois, como sabido, a Constituição entrou em vigor cem anos após a Abolição da Escravidão, sendo praticamente impossível que alguém remanescesse no sentido físico como propugnado na ação judicial. A interpretação de uma norma constitucional deve se dar na busca da maior eficácia possível e não o contrário. O segundo fundamento nasce de um equívoco epistemológico, pois o reconhecimento étnico de um povo deve se iniciar com uma autoafir- mação, mormente como é o nosso caso em que temos um país pluriétnico com diversas raças que o compõe. Para início de conversa, como alguém que, por exemplo, sempre viveu em um centro urbano poderá dar depoi- mento sobre a vida no campo? Ademais, a tese parece sugerir a aplicação do que seria um exótico princípio de má-fé, quando é a boa-fé que deve ser presumida. Como se al- guém pudesse se intitular quilombola e essa afirmação não fosse ser afe- rida, a posteriori , por técnicos especializados na temática do reconhecimen- to de etnias e, ainda, submetido tal trabalho ao crivo dos órgãos estatais competentes, com os deveres e responsabilidades estatutárias inerentes à condição de servidor público. 27 CRETELLA JUNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988 . v. IX. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994, p. 4988-4989. 28 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI/3239. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/ consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=2227157>. Acesso em: 19 out. 2018.
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