Revista da EMERJ - V. 21 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2019 - Tomo 2
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3, t. 2, p. 596-616, set.-dez., 2019 602 TOMO 2 Embora a Constituição de 1988 não o mencione expressamente 18 , não há dúvida de que as entidades abstratas também são titulares de al- guns direitos fundamentais 19 . É o caso, e.g. , do direito de propriedade e dos direitos processuais, como o acesso à Justiça, a ampla defesa e o con- traditório. Contudo, há direitos fundamentais que, por postularem uma “referência humana”, pressupondo “características intrínsecas ou naturais do homem como sejam o corpo ou bens espirituais” não podem ser esten- didos às pessoas jurídicas – caso, e.g. , da liberdade de consciência 20 : o ca- rácter ficcional dessas entidades, que nada mais são que abstrações 21 , torna inviável falar em convicções próprias, distintas daquelas de seus membros ou gestores 22 . Ademais, é preciso não perder de vista o princípio da especialidade: pessoas jurídicas são constituídas para certos fins, de modo que seu campo de atuação legítimo é limitado por seu objeto; por via de consequência, só lhes cabem os “direitos necessários ou convenientes à realização dos seus fins” 23 . O que marca a pessoa jurídica é o fato de não se confundir com 18 Diferentemente da Lei Fundamental alemã, que em seu art. 19 (3), dispõe: “Os direitos fundamentais também são váli- dos para as pessoas jurídicas sediadas no país, conquanto, pela sua essência, sejam aplicáveis às mesmas”; e da Constituição portuguesa, cujo art. 12, nº 2, prevê: “As pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza”. Em ambos os países, a literatura aponta que também estão incluídas as entidades despersonalizadas (HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha . Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 234; CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2011, p. 420). 19 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Direitos fundamentais – tópicos de teoria geral. In: MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. cit. , pp. 171-172; SARLET, Ingo Wolfgang. Teoria geral dos direitos fundamentais. In: SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional . São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, pp. 310-313. 20 CANOTILHO, J.J. Gomes. Op. cit. , pp. 421-422; WEINGARTNER NETO, Jayme. Liberdade religiosa na Constituição: fundamentalismo, pluralismo, crenças, cultos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 132. 21 Na explicação de Carlos Santiago Nino, são “construções lógicas” que cumprem um papel de simplificação: elas aju- dam a lidar com uma complexa rede de atos que envolvem pessoas variadas e normas jurídicas. V. SANTIAGO NINO, Carlos. Introdução à análise do direito . Trad. Elza Maria Gasparotto. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013, pp. 264-277. 22 A impossibilidade de invocação de crenças por pessoas jurídicas, nessa linha, foi defendida por CHEMERINSKY, Erwin; GOODWIN, Michele. Religion is not a basis for harming others: review essay of Paul A. Offit’s Bad faith: when religious belief undermines modern medicine . The Georgetown Law Journal , v. 104, pp. 1111-1136, 2016, p. 1133. O comentário dos autores é crítico à decisão da Suprema Corte dos EUA no caso Burwell v. Hobby Lobby , 573 U.S. ___ (2014), em que se afirmou que, no contexto específico de uma determinada lei, poder-se-ia imputar a uma sociedade empresária a manifes- tação de uma crença. A Corte poderia ter examinado o tema especificamente pela óptica constitucional em outro caso, que envolvia legislação estadual proibindo as drogarias de não ter ou entregar medicamentos por motivo de consciência de seus sócios. Em segundo grau, a norma foi considerada válida, mas a Suprema Corte se negou a examinar o pedido, com voto divergente, por escrito, do Juiz Alito, acompanhado pelo Chief Justice Roberts e pelo Juiz Thomas ( Stormans, Inc. v. Wiesman , 794 F.3d 1064, 1071 (9th Cir. 2015), cert. denied , 579 U.S. ___ (2016)). 23 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1998, pp. 118-199; MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional . 3. ed. rev. e atual. t. IV – Direitos fundamentais. Coimbra:
Made with FlippingBook
RkJQdWJsaXNoZXIy NTgyODMz