Revista da EMERJ - V. 21 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2019 - Tomo 2
551 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3, t. 2, p. 494-555, set.-dez., 2019 TOMO 2 Como já se pode entrever, a concepção de pessoa subjacente à Constituição de 1988 é radicalmente distinta da esposada pelo libertaria- nismo. O último adota, nesse particular, uma espécie de “individualismo possessivo”, em que os indivíduos são vistos como seres idealmente iguais que atuariam de forma autointeressada tanto no mercado como no pro- cesso político. Desse modo, as liberdades existenciais deveriam receber igual tutela jurídica à conferida às liberdades econômicas, e a solidarie- dade é equiparada à caridade, concebida apenas como virtude humana e não como norma jurídica obrigatória. Relega-se, portanto, a satisfação das necessidades básicas do hipossuficiente ao altruísmo e à compaixão da família, dos amigos e de instituições de caridade. Porém, a dimensão social da Constituição de 1988 não permite que o Estado cerre os olhos para as profundas desigualdades fáticas existentes na sociedade, já que reconhece que a opressão ao indivíduo provém não apenas do Estado, mas igualmente de outros indivíduos. Por outro lado, a Constituição de 1988 não estabeleceu hierarquia (jurídico-normativa ou mesmo axiológica) entre os direitos de defesa e prestacionais, reconhecen- do como essenciais à preservação da dignidade humana a não interferên- cia em um domínio reservado à liberdade individual, mas também a imple- mentação de políticas públicas destinadas a assegurar um nível mínimo de segurança social aos mais carentes. Assim, na esteira da posição afirmada majoritariamente em sede internacional, reconheceu o constituinte uma relação de interdependência e de complementaridade entre direitos de defesa e prestacionais, 102 conferindo a ambos jusfundamentalidade. Disso decorre que a restrição do rol dos direitos fundamentais às “liberdades civis”, em consonância à concepção libertária, não tem suporte na Carta de 1988, de molde que os conflitos entre direitos fundamentais devem ser resolvidos pela técnica da “ponderação de interesses”, e não mediante a hierarquização absoluta e apriorística dos direitos de defesa em detrimento dos direitos prestacionais. 103 102 Nesse sentido, a posição oficial da ONU. Confira-se o art. 5º, da Declaração Viena de 1993, aceita unanimemente por 171 Estados, verbis : “Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de maneira justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase.” 103 Sobre a questão das técnicas de resolução de conflitos entre direitos fundamentais, ver BARCELLOS, Ana Paula. Ponderação, Racionalidade e Atividade Jurisdicional . Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
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