Revista da EMERJ - V. 21 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2019 - Tomo 2

547  R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3, t. 2, p. 494-555, set.-dez., 2019  TOMO 2 a sua vida”. 94 A propósito, é inevitável que, no âmbito de uma sociedade livre, o exercício da razão humana conduza ao pluralismo, ou seja, a uma pluralidade de doutrinas que se qualificam como abrangentes, por abar- carem diversos aspectos da existência humana (moral, religião, filosofia, e - destaque-se - economia). Portanto, se “não é razoável usar as sanções do poder do Estado para corrigir ou punir aqueles que discordem de nós”, 95 não é legítimo entrincheirar uma doutrina abrangente na constituição com a finalidade de torná-la obrigatória àqueles que a ela não aderem, ou pior, para lhe conferir uma espécie de imunidade em face de mudanças deseja- das pelas maiorias constituídas após a geração constituinte. Assim, as normas alçadas à constituição devem ser interpretadas a partir de uma perspectiva de neutralidade política, a qual se limita à confor- mação da estrutura básica de um sistema equitativo de cooperação social, 96 cuja imparcialidade é garantida pelo fato de ser objeto de consenso sobre- posto entre as doutrinas abrangentes razoáveis. Evita-se, portanto, o uso do poder de império do Estado para a imposição aos indivíduos em geral de uma doutrina abrangente particular que seja adotada por maiorias tran- sitórias ou por minorias bem articuladas politicamente. Competindo aos juízes zelar pela preservação da constituição em face de vontades políticas contingentes, devem necessariamente fazer um uso público da razão, é di- zer, utilizar argumentos que possam ser objeto de consenso político, sen- do-lhes vedado o emprego de razões cultivadas por doutrinas abrangentes particulares, sob pena de fazerem prevalecer a sua concepção moral sobre a adotada pela maioria política. Em virtude de a sua atuação se restringir a um domínio de neutralidade política, afirma Ralws que “a razão pública é a razão do seu supremo tribunal”, enquanto maior intérprete judicial. 97 94 Ver a seção 2.2. A respeito da crise da metafísica e da inconsistência de justificativas jusnaturalistas para a preeminência de princípios de justiça de validade universal sobre os demais valores morais, ver HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico: estudos filosóficos . Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. 95 RAWLS, John. O Liberalismo Político . São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 184. 96 Rawls considera que compõem tal estrutura os elementos constitucionais essenciais e as questões básicas de justiça . Nesse rol estão inseridos os princípios fundamentais que estruturam o Estado (prerrogativas dos “poderes” e alcance da regra da maioria), os direitos ao voto e à participação política (nos quais se pode inferir o direito à nacionali- dade, como verdadeiro direito a ter direitos), a um mínimo existencial e as liberdades fundamentais, sejam as diretamente vinculadas ao processo democrático (v.g.: liberdade de expressão, de reunião, direito a informação), sejam as que não guardem relação imediata com a democracia (v.g.: liberdade de religião, de ir e vir e de escolha de profissão). V. RAWLS, John. O Liberalismo Político . Op. cit. 97 RAWLS, John. O Liberalismo Político . Op. cit., p. 286; 272.

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