Revista da EMERJ - V. 21 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2019 - Tomo 2
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3, t. 2, p. 494-555, set.-dez., 2019 516 TOMO 2 um uso desmedido, equivocado, ou insuficiente do poder de punir. 33 De fato, quando se é juiz em causa própria, a capacidade de julgar costuma ser distorcida, seja pela natural tendência em superestimar o dano sofrido, e, consequentemente, exceder-se na punição ou na mensuração da inde- nização devida, seja pelas pessoas se concederem o benefício da dúvida e suporem estar sempre com a razão, negando violações que tenham come- tido, ou acusando indevidamente terceiros de violarem os seus direitos. 34 Todavia, a plausibilidade da tese do consenso tácito não deve repousar, apenas, sobre as presumíveis vantagens à administração da justiça decor- rentes da criação do Estado, mas pressupõe que o dissenso seja factível. A possibilidade de dissenso, contudo, não se verifica para boa parte da população, pois, como notou Hume, não parece razoável admitir que um pobre artesão, que mal conhece a sua própria língua e que luta diariamente para sobreviver, tenha uma verdadeira opção de deixar a sua terra natal. 35 Afigura-se nítido que essa possibilidade teórica se revela, para muitos, uma impossibilidade prática. Uma das principais contribuições de “Anarquia, Estado e Utopia” para a teoria política consiste na ideia de que os indivíduos, ao agirem de forma autointeressada no Estado de Natureza, caminharão, sem querer, ou mesmo perceber, para o Estado Mínimo, que garantirá a imparcial ad- ministração da justiça preconizada por Locke, sem que se verifique nesse processo violação aos direitos naturais de quem quer que seja. Trata-se da sua versão à tradicional explicação da “mão invisível”, a qual eviden- cia como um governo civil, que parece resultar da vontade artificial do homem (como preconizado pelas teorias contratualistas), pode ser fruto de uma série de atos de pessoas autointeressadas que sequer supuseram criar um Estado. Cuida-se de reconstrução teórica que visa a demonstrar como a criação do governo civil pode deixar incólumes os direitos na- turais, afastando a intuição de que a adoção de uma teoria dos direitos naturais conduziria ao emprego de um anarquismo individualista. Nesse processo, Nozick identifica várias etapas evolutivas, que serão sumariadas, de forma abreviada, a seguir. 33 Cf. LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo. São Paulo: Martins Fontes, 2001.; TULLY, James. An approach to political philosophy: Locke in contexts - Ideas in context . Cambridge: Cambridge University Press, 1993. 34 Ibid., p. 26. 35 Ibid., p. 41
Made with FlippingBook
RkJQdWJsaXNoZXIy NTgyODMz