Revista da EMERJ - V. 21 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2019 - Tomo 2

 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3, t. 2, p. 494-555, set.-dez., 2019  508 TOMO 2 em que não se concebe justificativa razoável para que eles sejam afastados, providência que apenas se verifica com a prática de atos ilícitos. Assim, considerações baseadas nos direitos à vida, à liberdade e à propriedade derrotam, no âmbito do que é juridicamente exigível, quaisquer outros valores morais, inclusive o bem-estar geral, as necessidades de terceiros ou direitos positivos, além de a sua proteção consistir na única forma de legitimação de atos estatais coercitivos. Delineados os contornos básicos da teoria de direitos de Nozick, ora nos cumpre desenvolvê-la, ainda que de forma esquemática e simplifi- cada. Nesta esteira, saliente-se que consiste em premissa fundamental para a compreensão da concepção de Nozick a respeito dos direitos funda- mentais a noção, fortemente individualista, concernente à separação entre as pessoas. Partindo de truísmos recorrentes, como o fato de vivermos vidas e existências distintas, Nozick afirma que somente o indivíduo tem o direito de decidir o que ocorrerá com a sua vida, liberdade, corpo e bens, pois eles não pertencem a ninguém senão ao seu titular. Assim, não se pode sacrificar uma pessoa em benefício de outra, ou, em outras palavras, impor a alguém um sacrifício que corresponda a um ganho de outrem, mesmo que tais medidas sejam fundamentadas no bem-estar da coletividade ou na necessidade do beneficiado. Bem ilustra o equívoco de se desconsiderar a separação entre as pessoas o caso da distribuição coercitiva de partes do corpo, exemplifica- do pela “loteria de olhos” ( eye lottery ). 22 Imagine-se que o avanço tecnoló- gico da medicina permita que os transplantes de globos oculares tenham cem por cento de êxito. Considerando que o número de pessoas que têm os olhos sadios supera, significativamente, o quantitativo de pessoas com graves problemas de visão, poderia se cogitar de uma política de redistri- buição de olhos, com o escopo de garantir que todos possam ver. Desta feita, caso o governo não obtivesse o número de doadores voluntários suficiente para tal desiderato, poderia implantar uma espécie de loterias de olhos, segundo a qual os perdedores seriam obrigados a doar um globo ocular a pessoa com problemas de visão. Embora a erradicação da ceguei- ra pareça maximizar o bem-estar geral da sociedade, a referida medida se revela, para dizer o mínimo, grotesca, violando, de forma especialmente 22 NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991, p. 223.

RkJQdWJsaXNoZXIy NTgyODMz