Revista da EMERJ - V. 21 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2019 - Tomo 1

305  R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3, t. 1, p. 272-314, set.-dez., 2019  TOMO 1 regulativo que esses processos não representem a perda da identidade constitucional. Toda Constituição tem uma dimensão cultural própria 68 que, posta em diálogo com outras, pode evoluir sem se tornar uma caricatura ou um patchwork de feições alheias. Propomos, assim, que o processo de assimilação de conceitos externos corresponda a uma forma de antropofagia constitucional 69 , do qual resulte uma absorção sem imitação , para que possamos construir nossas narrativas constitucionais sem veneração por catequismos externos. Defender que se impõe uma reconstrução dos conceitos importados não corresponde à afirmação de uma espécie de anti-imperialismo constitucional, mas sim sustentar que nosso constitucionalismo deve enunciar narrativas de autoria própria, ainda que esta resulte da mistura de variados elementos das culturas constitucionais provindas de realidades sociais distintas (como a europeia e norte-americana), similares (como as latino-americanas e das democracias recentes) e de seus múltiplos referenciais internos 70 . É certo que os riscos de importação acima enumerados não se apresentam quanto ao conceito de estado de coisas inconstitucional. Há 68 Sobre as complexas relações entre Constituição e cultura, é interessante a contribuição de Peter Häberle, que afirma que a teoria constitucional é sempre parte integrante de uma realidade cultural, entendida a partir de três eixos: tradição, inovação e pluralismo. O pluralismo liga-se ao entendimento do autor de que a Constituição é uma realidade aberta, ao mesmo tempo que constituiu a herança cultural do povo, de sua tradição e de sua experiência histórica, assim como o reflexo de suas esperanças e expectativas futuras. HÄBERLE, Peter. Teoría de la Constitución como Ciencia de la Cultura . Tra- dução de Emilio Mikunda. Madrid: Technos, 2000, passim. 69 Dado o cerne temático do presente estudo, o melhor desenvolvimento do conceito de antropofagia constitucional será deixado para ocasiões futuras. 70 O Movimento Antropófago foi lançado na década de 1920 por Oswald de Andrade, enunciando a ideia de mestiçagem cultural e rejeitando a importação acrítica da cultura estrangeira. Como afirma José Paulo Paes: “[A]o aderir de corpo e alma à voga do primitivo, os vanguardistas de 22 não estavam apenas copiando mais uma moda europeia. Estavam era tentando descobrir a identidade brasileira por um processo de retomada cultural que Oswald de Andrade explicitou no Manifesto Antropófago: ‘Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem’. Referia-se ele obviamente ao mito do bom selvagem inspirado pelo índio americano a Montaigne e Rousseau e que o neoprimitivismo se encarregou de pôr outra vez em circulação. Antonio Candido acentuou a legitimidade dessa retomada ao observar que ‘no Brasil, as culturas primitivas se misturam à vida cotidiana ou são reminiscências ainda vivas de um passado recente’, pelo que as ‘terríveis ousadias’ sugeridas a artistas plásticos como Picasso e Brancusi ou a poetas como Max Jacob e Tris- tan Tzara pelas deformações e/ou simplificações expressivas da arte primitiva são ‘mais coerentes com a nossa herança cultural do que com a deles’.” PAES, José Paulo. A aventura literária: ensaios sobre ficção e ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 65. Neste sentido, vale observar alguns trechos do Manifesto Antropófago , de Oswald de Andrade: “Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar [...] Queremos a revolução Caraíba. Maior que a revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: – É a mentira muitas vezes repetida. (...) As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo.” ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropófago. Revista da Antropofagia , ano 1, n. 1, 1928 apud CANDIDO, Antonio; CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da literatura brasileira : história e crítica. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 79-89.

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