Revista da EMERJ - V. 21 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2019 - Tomo 1
275 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3, t. 1, p. 272-314, set.-dez., 2019 TOMO 1 II. A prevalência do paradigma legiscêntrico nos conceitos tradicionais de inconstitucionalidade Tradicionalmente, a literatura jurídica descreve a inconstitucionali- dade como uma relação de incompatibilidade entre normas pertencentes a um determinado sistema jurídico e a Constituição nele adotada. Nes- se sentido, fala-se na inconstitucionalidade como “a desconformidade do ato normativo (inconstitucionalidade material) ou de seu processo de elaboração (inconstitucionalidade formal) com algum preceito ou princí- pio constitucional” 1 . Essa visão tem como fundamento a própria gênese do controle de constitucionalidade, estando fortemente influenciada pela “lógica de Marshall” 2 , segundo a qual a relação de incompatibilidade ver- tical entre dois atos normativos de hierarquia distinta carreia a nulidade do ato inferior. O conceito ortodoxo de inconstitucionalidade é também tributário da compreensão do Direito como sistema governado por uma lógica própria e desconectada de critérios externos. Nesse sentido, fala-se na inconstitucionalidade como “um problema de relação intrassistemática de normas jurídicas, abordado do ponto de vista interno, conforme os critérios de validade contidos nas normas constitucionais” 3 . A noção de incompatibilidade internormativa, todavia, é uma des- crição acurada de apenas uma das facetas da inconstitucionalidade: aquela deflagrada por um comportamento ativo do legislador. Ela não se amolda a outras modalidades de comportamentos contrários às normas consti- tucionais, notadamente às omissões inconstitucionais absolutas e às vio- lações decorrentes de falhas na implementação de políticas públicas. A ampliação do escopo das Constituições ao longo da segunda metade do 1 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro . 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 36. No mesmo sentido, v. TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. Curso de direito consti- tucional . Rev. e atual. por Maria Garcia. Rio de Janeiro: Forense Universtária, 1991, p. 378-379. 2 Na precisa definição de NINO, Carlos Santiago. La filosofia del control judicial de constitucionalidad. Revista del Centro de Estudios Constitucionales . Argentina, n. 4, 1989, p. 80: “A ideia é esta: é óbvio que os juízes devem aplicar a lei, mas como determinar o que é a lei? Em suma, está determinado pela Constituição, pelas regras de competência estabelecidas na Constituição; regras que, como diria Kelsen, se referem a um determinado órgão, a um determinado procedimento e, por vezes, a um determinado conteúdo. Quando a lei ou a suposta lei não satisfaz essas condições, na verdade não é uma lei e os juízes, portanto, não estão justificados para aplicá-la, assim como uma norma qualquer que tenha ditado um usurpador. Por conseguinte, se a Constituição é o parâmetro final para decidir o que é a lei, os juízes não podem estar justificados sob nenhuma circunstância de aplicar uma lei inconstitucional.” (tradução livre). 3 NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das leis . São Paulo: Saraiva, 1988, p. 70.
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