Revista da EMERJ - V. 21 - N. 2 - Maio/Agosto - 2019

 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 52-118, Maio-Agosto, 2019  99 bretudo, são valorativas suas considerações sobre a liberdade enquanto bem que, em última instância, justifica a existência do direito, o qual acaba legitimado à margem de seus conteúdos enquanto garantidor de uma li- berdade mínima, a qual, até no mais tirânico dos regimes jurídicos, será maior do que no estado de natureza, ou se não quisermos usar tal expres- são – que Kelsen chamaria de fictícia –, em uma convivência na qual os impulsos naturais ou instintivos não fossem freados pela força motivadora da coação jurídica. O primeiro efeito dessas premissas relativistas e antimetafísicas de Kelsen é sua relativização da comunidade frente ao indivíduo. Ele repe- le toda justificação da comunidade entendida enquanto entidade superior aos indivíduos que a compõem, justificativa cuja razão é sempre ideoló- gica: a obtenção da obediência dos indivíduos em favor do ordenamento concreto que supostamente encarna a essência da comunidade. Entretan- to, Kelsen não pode deixar de sustentar certa supremacia da comunidade, dado que sem isso não caberia a justificação do direito entendido enquan- to ordem que se impõe às liberdades particulares. Kelsen renega também, tachando-o de ideológico, o raciocínio rousseauniano segundo o qual a comunidade pode ser a expressão da liberdade de cada um. Com isso Kel- sen resolve de modo inovador o conflito entre indivíduo e sociedade ao combinar a justificativa da necessidade do direito com a relativização da comunidade. Segundo Kelsen, não há mais comunidade do que a jurídica, ou seja, aquela que o próprio direito estabelece. Sem direito não há co- munidade e não existe – ao menos para a ciência e a observação racional – mais comunidade do que aquela que o direito cria. Dessa feita, o Estado não se identifica com nenhum gênero de comunidade prévia ao direito, sendo apenas a manifestação personificada do ordenamento jurídico. As- sim postas as coisas, a supremacia da comunidade não é mais do que a supremacia do direito sobre os indivíduos, supremacia que faz parte do próprio conteúdo conceitual ou razão de ser do direito. Ao criticar a ideia de que o Estado seria uma realidade natural ba- seada na união ou interação psíquica, Kelsen assinala que não há dúvida de que “la esencia de toda unidad social es la ‘unión’”. 114 Todavia, a única união que pode fundamentar a sociedade é a que se dá por meio de nor- Hobbes, assim como o será de Hans Kelsen: a ordem é a interdição da guerra civil” (BARCELLONA, 1992, p. 152). 114 KELSEN, 1979c, p. 10.

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