Revista da EMERJ - V. 21 - N. 2 - Maio/Agosto - 2019

 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 52-118, Maio-Agosto, 2019  98 3.3. Acaso não foi Kelsen um democrata e um dos mais destacados teóricos e fundamentadores da democracia? 112 Considerando que o relativismo axiológico de Kelsen e sua con- cepção de racionalidade levam-no a recusar toda tentativa ideológica de justificação moral da obediência ao direito surgida de teorias jurídicas que se querem racionais e científicas, é de se notar que essa mesma concep- ção o fará questionar a possibilidade de se considerar como racional – e não meramente ideológica e guiada por interesses – qualquer legitimação teórica desta ou daquela autoridade. Porém, aqui desponta novamente o paradoxo. O rechaço kelseniano de toda legitimação de autoridades extra ou suprajurídicas associa-se à sua justificação da autoridade do direito. No fundo de sua doutrina pulsa permanentemente a ideia de que o direito é necessário para que exista sociedade, justificando-se, portanto, por sua função ordenadora. Assim, a autoridade mostra-se como necessária, mas toda autoridade humana é relativa e contingente e, por isso mesmo, insus- cetível de justificação racional. Nenhuma pessoa ou sociedade, nenhuma ideia ou representação pode se pretender legitimada para se impor sobre as demais em nome da verdade ou de valores absolutos. A esse respeito, a filosofia kelseniana é plenamente relativista e desmistificadora, não co- mungando com nenhuma camuflagem ideológica do poder. Trata-se de uma filosofia realista que repele o disfarce dos fatos, vendo apenas ideolo- gia em todas as teorias legitimadoras do poder, por mais que essa mesma óptica realista leve Kelsen a admitir que o poder é necessário na sociedade e que, para se manter, ela necessita de inevitáveis ideologias. Contudo, essa é uma justificação funcional do poder e das ideologias, não uma legitima- ção de conteúdos concretos de um ou de outras. Kelsen não é indiferente quanto à alternativa entre anarquia e or- dem. Ele não se limita a estabelecer as condições necessárias para que a ordem social possa se dar como alternativa à anarquia, mas também pro- cura justificar a necessidade da ordem mediante argumentos valorativos. Nesse sentido, é valorativa a concepção kelseniana da natureza hu- mana como essencialmente negativa, por ser agressiva e egoísta. Com efeito, trata-se de um dos elementos que conectam Kelsen a Hobbes. 113 E, so- 112 Nesta seção reproduzo os principais conteúdos de meu livro Hans Kelsen y la norma fundamental (AMADO, 1996, pp. 186-199). 113 Barcellona antevê a conexão hobbesiana quando anota que “o problema da ordem social é a obsessão de Thomas

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