Revista da EMERJ - V. 21 - N. 2 - Maio/Agosto - 2019
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 52-118, Maio-Agosto, 2019 93 Como sabemos, Kelsen pensa que a validade do direito tem como con- dição sua eficácia. Tal eficácia, afirma Kelsen, depende da propagação na sociedade da ideologia ou da crença de que o direito obriga e, portanto, suas normas devem ser obedecidas. 93 Em certas passagens Kelsen ressalta ainda que validade é o mesmo que obrigatoriedade, pois afirmar que uma norma é válida significa que deve ser cumprida, dado que estabelece uma obrigação, um dever de obediência. Mas entender que com tudo isso Kel- sen está propugnando a obediência às normas – que ele defende que todo dilema subjetivo e pessoal entre a obediência ou a desobediência deve ser resolvido pelos sujeitos em favor da primeira alternativa – não passa de uma simplificação grosseira de seu pensamento. Kelsen trata a eficácia e a ideologia social enquanto pressupostos fáticos que têm que se verificar na sociedade para que o direito possa operar. Não são deveres morais nem regras de comportamento distintas das jurídicas. Quando Kelsen menciona a equiparação entre validade e obrigatoriedade, o faz mediante uma perspectiva que podemos chamar de intrassistemática, 94 ou seja, que se dá a partir do ponto de vista do próprio ordenamento jurídico, de maneira que para o direito positivo suas normas são obrigatórias. O direito tem normas para estabelecer obrigações jurí- Kelsen – quando ele trata da obrigação jurídica – do que fundamentar um dever “para com o sistema”, e ainda mais se se trata de um dever moral. Kelsen se refere ao dever a partir do sistema ou sob a óptica do sistema. É também radicalmente falso afirmar que “a Kelsen le preocupa el problema tradicional de la cualidad moral que distingue a un orden jurídico del régimen de un gánster ” (ROSS, s/d, p. 376). A opinião de Bobbio parece mais ponderada. Esclarece ele que “la teoría pura del derecho no puede ser confundida [...] con la concepción legalista, la cual, entre validez y valor, no realiza ninguna distinción” (BOBBIO, 1974, p. 307). Também Tammelo, ao mencionar outro exemplo, aduz que é incorreta a acusação de que Kelsen propugna a obediência a qualquer direito, por mais injusto que seja (TAMMELO, 1984, p. 248). Da mesma maneira, Delgado Pinto ressaltou o desacerto de críticas como a de Ross (PINTO, 1978, pp. 11-12). Também José Anto- nio Ramos Pascua se manifestou no mesmo sentido (PASCUA, 1989, p. 45). 93 Podemos associar à ideia de Kelsen acima exposta a de que será mais e melhor obedecido aquele direito que não entre em contradição com motivos contrapostos, ou seja, que não contradiga, por exemplo, a moral socialmente dominante. Cf. KELSEN, 1963, p. 65 – original de 1921 –, texto em que Kelsen afirma que a participação – ainda que indireta – dos cidadãos na criação das normas aumenta a “disposição à obediência”. Em qualquer caso, essa é uma constatação própria do sociólogo, não do cientista do Direito (KELSEN, 1955, p. 143), já que “a la teoría pura del derecho no le importan los motivos reales que muevan a la obediencia a los ciudadanos, pues tendrán que ver con los fines perseguidos por el ordenamiento concreto, históricamente condicionados, y sobre fines la teoría pura del derecho no puede pronunciarse” (KELSEN, 1946, pp. 59-60. Originalmente publicado em 1934). 94 De modo similar, Leser argumentou que é preciso abster-se de entender algo mais do que o cair sob o império do ordenamento, o estar abarcado pelo ordenamento. O Sollen jurídico não supõe a vinculação da consciência do indivíduo. Seu sentido é meramente “imanente ao sistema”, razão pela qual não precisa coincidir com o sentido que a conduta possui para o sistema moral (LESER, 1968, p. 230). Conforme tal interpretação, não tem razão Amselek quando acusa Kelsen de “paralogismo” ao confundir “válido” e “obrigatório” (AMSELEK, 1981, p. 470). Kelsen assevera unicamente que, a partir do ponto de vista do direito, validade e obrigatoriedade são a mesma coisa, não que validade jurídica implica obrigatoriedade moral, como entende Amselek.
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