Revista da EMERJ - V. 21 - N. 2 - Maio/Agosto - 2019

 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 52-118, Maio-Agosto, 2019  92 justo significa ver a luta entre grupos que se enfrentam em nome de seus respectivos interesses sob a roupagem ideológica da justiça. A sociedade tem que ordenar suas disputas com base em um elemento comum, o qual não pode ser incognoscível ou questionado. Só o direito positivo pode oferecer tal base, independentemente dos fatos secundários de que cada direito ampare uma ideia do justo ou de que a eficácia dos ordenamentos jurídicos aumente na medida do convencimento de seus destinatários de que suas normas são justas. 90 As concepções do justo são múltiplas. Entretanto, por definição, o direito positivo válido só pode ser um, dado que o postulado central da doutrina de Kelsen é o da unidade e da unicidade do sistema jurídico. Não é possível encontrar uma ideia única de justiça, pero sólo existe un derecho positivo. O bien – si queremos jus- tificar la existencia de los distintos órdenes legales nacionales – existe un único derecho positivo para cada territorio. Su con- tenido puede ser descrito sin ambigüedad utilizando un método objetivo. [...] A las normas del derecho positivo les corresponde cierta realidad social, lo cual no sucede con las normas de Jus- ticia. En este sentido, el valor del Derecho es objetivo, mientras que el valor de la Justicia es subjetivo. 91 O relativismo de Kelsen não se encaixa de modo algum na interpre- tação que de sua doutrina se faz muito frequentemente, vendo-a enquanto propugnadora da obediência dos sujeitos às normas do direito positivo. 92 90 KELSEN, 1968e, p. 826. Originalmente publicado em 1961. 91 KELSEN, 1991b, p. 150. Texto original de 1942. 92 Tal repreensão pode ser encontrada em Alf Ross. Segundo Ross, quando Kelsen equipara a validade ao dever ou à obrigatoriedade de cumprir as normas ele está justificando a existência de um dever moral de cumprir o direito, pois “parece obvio que el deber de obedecer el derecho no puede significar una obligación o un deber jurídico en el sentido en que estas palabras son usadas para describir una situación jurídica que en ciertas circunstancias surge de una norma jurí- dica, por ejemplo, la obligación del deudor de pagar una deuda estipulada” (ROSS, s/d, p. 368). Ora, o que parece óbvio a Ross não é, na verdade, algo tão óbvio, sendo efetivamente a chave para se compreender o tema. A obrigação jurídica de que trata Kelsen – e que surge sempre que uma norma jurídica é válida e existe um seu destinatário – é a mesma que os juristas descrevem quando explicam o direito válido: trata-se daquela obrigação que emana da norma enquanto dever por ela imposto de fazer ou deixar de fazer algo. Não se trata de uma obrigação de qualquer outro tipo. Portanto, quando Kelsen fala da obrigatoriedade do direito, ele se refere à perspectiva que se tem a partir do próprio direito, ou seja, sobre determinadas condutas afetadas pela norma, da conduta do sujeito vista sob o prisma da norma jurídica, nunca a partir de parâmetros morais, políticos etc. Portanto, nada mais alheio ao pensamento de Kelsen do que entender que “el deber de obedecer el derecho es un deber moral hacia el sistema jurídico, no es un deber jurídico conforme al sistema. El deber hacia el sistema no puede derivarse del sistema mismo, sino que tiene que surgir de reglas o principios que están fuera del mismo” (ROSS, s/d, 369). Por mais que esta última afirmativa esteja correta, não há nada mais distante do propósito de

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