Revista da EMERJ - V. 21 - N. 2 - Maio/Agosto - 2019
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 52-118, Maio-Agosto, 2019 90 Se todo juízo de valor sustenta-se em uma norma, não se pode perder de vista que, para Kelsen, toda norma é resultado de uma vontade, de um que- rer, nunca de um conhecer. As normas nascem sempre do volitivo, jamais do mero conhecimento ou da razão, nunca do simples pensar, da mera constata- ção de certa realidade. O plus que especifica as normas e lhes dá vida é sempre um ato de vontade e todo ato de vontade pressupõe um sujeito que quer. Em consequência, toda norma parte de um querer inevitavelmente subjetivo. Considerando-se a impossibilidade de demonstração racional da existência de vontades supra-humanas, tem-se que as normas expressam sempre a vonta- de de um sujeito humano, ou seja, são relativas ao autor que as produz, por mais que sua validade possa objetivar-se em sistemas socialmente implantados tendo em vista a crença compartilhada nessa mesma validade. Tal objetivação desemboca sempre em uma norma cuja validade se pressupõe, nunca se de- monstra e para a qual também terá que se pressupor ou fingir uma vontade produtora, como ressalta Kelsen em seus últimos escritos. Uma primeira consequência da estrita separação que Kelsen traça entre o conhecimento e a vontade produtora de normas é a impossibili- dade da razão prática. A mera razão – o conhecimento – não pode por si, sem o auxílio da vontade, gerar normas. Não há razão legisladora 84 por dois motivos: porque a razão não pode conhecer primeiras verdades ou verdades absolutas e, ademais, porque, ainda que tal fosse possível, sem o elemento volitivo a razão não seria suficiente para normatizar condutas. Só no Deus da Teologia unificam-se razão e vontade, conhecimento e nor- matização. Todavia, o conhecimento racional não consegue demonstrar a existência desse Deus e nem suplantá-lo, provando que o homem pode si- multaneamente querer e conhecer o bem de modo que suas normas sejam vistas como encarnações do bem e da justiça absolutos. Segundo Kelsen, bastar fixarmo-nos na variedade de conteúdos normativos que têm pre- tendido se justificar como produtos do conhecimento da vontade divina ou como emanações da verdadeira justiça para nos darmos conta de que por trás disso há apenas tentativas de camuflagem ideológica da simples vontade humana que subjaz a toda norma. Kelsen enfrenta a filosofia da justiça armado com o relativismo axiológico, o emotivismo ético e o conceito negativo de ideologia. A jus- tiça é um valor e, enquanto tal, só pode ser relativo, pois “el problema de 84 KELSEN, 1979a, p. 203.
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