Revista da EMERJ - V. 21 - N. 2 - Maio/Agosto - 2019
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 52-118, Maio-Agosto, 2019 89 O parágrafo é longo e alguém pode se confundir em meio a velhos preconceitos. O que Kelsen contrapõe com toda clareza é o “suposto” positivismo do século XIX – que via na decisão judicial uma subsunção automática e isenta de toda discricionariedade – e sua própria teoria posi- tivista, a qual destaca exatamente o contrário, ou seja, o caráter fortemente criativo e de forma alguma meramente lógico ou automático da decisão judicial. Com efeito, Kelsen sempre insistiu nisso ao longo de toda sua enorme obra. Mas nem todos os que dele falam leram seus escritos ou leram mais do que poucas páginas descontextualizadas e/ou mal traduzi- das. Voltemos a nos perguntar com quem se parecem hoje esses juristas que Kelsen retrata como convencidos de que não há mais que uma única resposta correta, a qual o juiz encontra pré-escrita e prescrita no fundo substantivo do direito, em uma ordem “natural” de justiça que, na atua- lidade, chamaríamos de constitucional, a qual pode ser descoberta com a ajuda de um método que já não é o da subsunção, mas outro, que tem a ver com pesos e medidas, conformando novas metáforas naturalistas de idêntico propósito e similar utilidade ideológica. 3.2. Kelsen já nos convidou alguma vez a submetermo-nos em cons- ciência ao direito positivo ou a obedecer ao direito injusto? 83 O relativismo filosófico de Kelsen traduz-se em relativismo axioló- gico. Não é possível conhecer valores absolutos de nenhum tipo; cabem, porém, valorações objetivas, que são aquelas feitas em correspondência com uma norma. Assim, quando sustentamos que determinado ato é jus- to, o fazemos à luz de uma norma de justiça que opera como premissa maior do raciocínio. Porém, tal premissa maior é sempre subjetiva, in- demonstrável em sua verdade ou validade objetiva. Dessa maneira, todo juízo de valor – ainda que se mostre enquanto aplicação objetiva de dada norma – é sempre relativo, por ser relativa ou hipotética a validade da nor- ma que lhe serve de base. O mesmo pode ser afirmado acerca dos juízos jurídicos, quer dizer, dos juízos de legalidade ou de ilegalidade de certo ato, juízos que têm lugar sempre mediante uma norma jurídica cuja validade última se remete à norma fundamental. 83 Nesta seção reproduzo, com pequenas modificações, o conteúdo de algumas partes de meu livro Hans Kelsen y la norma fundamental (AMADO, 1996, pp. 174-185).
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