Revista da EMERJ - V. 21 - N. 2 - Maio/Agosto - 2019

 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 52-118, Maio-Agosto, 2019  88 Kelsen volta assim a ressaltar o componente estritamente ideológico de tais doutrinas da decisão judicial, aparentemente hiper-racionalistas. Em outra oportunidade Kelsen explica que a teoria da subsunção do século XIX tem raízes jusnaturalistas, pois aduz que o juiz encontra sua decisão prefigurada na lei do mesmo modo que o legislador encontra a sua na ordem natural. Vale a pena determo-nos com calma nesse argumento de Kelsen. Quem tem ouvidos, que ouça: A ideia do caráter de mera reprodução que a criação do direi- to possuiria não se refere unicamente ao processo legislativo, mas muito especialmente à chamada jurisprudência [ Rechtspre- chung ]. Esta deve fazer-se valer precisamente por referência a esse nível, qual seja, o do direito positivo. Se o legislador já não é propriamente o criador daquilo que é jurídico, limitando-se a expressar o que, sem necessidade de seu acréscimo, é em si mesmo “jurídico”, menos ainda se pode contemplar a função judicial enquanto criação do direito. Assim como a lei positiva está, na verdade, contida na ordem “natural” – na ideia de di- reito –, nada fazendo o legislador além de traduzi-la, do mesmo modo a sentença judicial – e esta em muito maior medida – está contida na lei e é dela extraída mediante uma simples operação lógica, sem que o juiz acrescente ou retire coisa alguma. Para o juiz, todo direito está contido na lei, a qual, por meio da ação do legislador, é o reflexo imediato da ordem natural querida por Deus. Dessa forma, ao fundamento epistemológico acrescenta- se um motivo político. Mediante tal perspectiva demonstra-se quão profundamente se ancora no pensamento jusnaturalista a doutrina – também presente no positivismo jurídico – de que o direito está contido na lei, assim como a ideia que dela deriva com consequência: a do caráter meramente reprodutivo e não criativo, do caráter de mera subsunção que teria a [...] aplicação do direito [ Rechtsanwendung ]. É a tese – também defendida com grande vigor por supostos positivistas, especialmente pelos fun- dadores e partidários da Escola Histórica do Direito – de que a legislação positiva não é mais do que a descoberta de um direito que, de algum modo, está previamente dado. 82 82 KELSEN, 1968b, p. 233. O original desse texto é de 1927.

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