Revista da EMERJ - V. 21 - N. 2 - Maio/Agosto - 2019

 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 52-118, Maio-Agosto, 2019  86 Assim, não obstante o juiz deseje submeter sua decisão ao direito, tal direito só a determinará traçando uma moldura, um leque de possibili- dades dentre as quais ele escolherá a que melhor se enquadra em sua moral e em seu senso de justiça. Desse modo, voltemos às velhas imputações e, levando em conta que essas ideias de Kelsen vinham sendo expostas há muito tempo, per- guntemo-nos: podiam os juízes nazistas se escudar afirmando que o posi- tivismo do desprezado Kelsen lhes dizia que na lei a verdade não tem mais do que um caminho? Careciam de margem de manobra interpretativa para fazer as normas nacional-socialistas mais humanas, dado que não tinham a dignidade pessoal mínima para, como juízes, simplesmente não aplicá-las ou ao menos se demitirem de seus cargos? A resposta é mais que óbvia. De sua infâmia pessoal fizeram uma desculpa infame e culparam Kelsen, o judeu exilado. Porém, há mais. Kelsen sustenta que as normas jurídicas têm tal grau de indeterminação que sempre é possível ao juiz ressaltar certa pe- culiaridade dos fatos para fazer com que o caso não se encaixe sob a nor- ma que não deseja aplicar ou, inclusive, para que não lhe seja aplicável nenhuma norma e que, por se dar então uma lacuna, possa o juiz decidir criando a norma que melhor e mais justa lhe pareça. Ao analisar as con- sequências do famoso artigo 1º do Código Civil suíço, a teor do qual se o juiz não encontra lei ou costume aplicável, resolverá “segundo a regra que ele mesmo estabeleceria como juiz”, insiste Kelsen que admitir que, em caso de lacuna, o juiz pode decidir como se fosse o legislador, implica que ele pode decidir de acordo com seu livre arbítrio nos casos em que con- sidere intolerável a aplicação da norma. 76 Se os juízes amiúde não fazem uso dessa possibilidade e não ultrapassam com muita frequência o marco de possibilidades dado pela lei é porque estão imbuídos da convicção de que devem se ater, o máximo e sempre que possível, aos termos da lei e aos limites que demarcam. 77 Segundo Kelsen, trata-se de uma convicção de natureza ideológica e que não é dada por uma teoria positivista da vali- dade jurídica, mas por outros fatores que configuram as ideologias social e coletivamente dominantes. Aplicando tal ideia à atuação da magistratura sob o nazismo e recordando que o positivismo kelseniano nunca equi- 76 KELSEN, 1979a, p. 254 et seq. 77 AMADO, 1996, p. 158 et seq.

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